Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Qual democracia?

Helder Gomes

Nas últimas duas décadas vivemos a angústia de ultrapassarmos o período do totalitarismo militar sem, contudo, construirmos efetivamente um processo de ruptura com a tradição autoritária da política brasileira. Neste artigo procuro resgatar o debate sobre democracia, a fim de colocar um contraponto às manifestações recentes em torno das comemorações pelos 20 anos do fim da ditadura militar no Brasil, tentando colocar os pingos nos is desse processo, perguntando em que medida pode-se considerá-lo efetivamente democrático.

Pressupostos teóricos

Partimos da premissa de que a democracia tem sido uma grande incógnita, um enigma, uma interrogação, e não um conceito universal, acabado, pronto para ser exercido na prática. Esse talvez seja o maior dilema colocado atualmente, tanto para liberais como para socialistas, uma vez que os vários modelos apresentados, os capitalistas e os processos revolucionários experimentados no século XX, não afastaram o risco de regimes totalitários, bem como não resolveram o problema primordial da qualidade de vida do conjunto da sociedade, dentro da racionalidade econômica de cada modelo adotado. Dito isso, me prendo à crítica do modelo predominante, que é o que mais interessa para a avaliação dos últimos vinte anos do Brasil: o modelo liberal de democracia representativa.

O pressuposto liberal dominante de democracia representativa está limitado à escolha de governantes e parlamentares a partir da máxima do a cada cabeça um voto. Neste esquema, o eleitorado não decide sobre o que fazer na sociedade, mas, apenas escolhe as personalidades que tratarão de resolver os problemas de satisfação da cidadania.

Como se vê, dentro dos pressupostos liberais dominantes, na medida em que o Estado satisfaz a demanda da cidadania em seu conjunto ele é um Estado democrático. O problema da democracia estaria, assim, resolvido. Entretanto, aqui reside um grande limite, pois, a cidadania liberal é confundida como um sistema de consumo, onde o Estado funcionaria como um distribuidor dos mecanismos de satisfação dos anseios políticos da sociedade. Além disso, há de se questionar em que medida todos os interesses existentes na sociedade estariam representados no espectro de partidos políticos diferenciados e, também, se o rodízio de governantes e parlamentares, via eleições periódicas, asseguraria a eliminação dos riscos da tirania, como defendem os liberais.

Assim, a crítica volta-se para o formalismo dessas proposições. Na verdade, apesar do inegável sucesso político que garante sua perenidade até aqui, a democracia representativa liberal está mesmo muito longe de atender aos princípios da igualdade, da liberdade e da soberania popular. Se considerada a hierarquia imperialista, que impõe modelos de organização social às nações subordinadas, pode-se dizer, ainda, que o modelo político liberal está também bem longe de atender aos pressupostos da autodeterminação dos povos sobre seus processos políticos internos.

Qual democracia?

Por isso, pergunto o que temos de fato a comemorar afora a distância de um período de recrudescimento do autoritarismo tradicional da política brasileira. Nada. As amarras autoritárias estão aí a desafiar as novas gerações, seja porque evidencia cada vez mais a farsa democrática representada pela utopia liberal, seja porque desnuda as representações mais à esquerda, mostrando-as totalmente subordinadas à lógica do mercado capitalista, sem qualquer ímpeto de transformação social.

Aplicando as questões suscitadas acima para o caso brasileiro na atualidade vê-se a dimensão do problema. O atual governo foi eleito com o discurso da mudança, mas aprofundou ainda mais as políticas neoliberais do governo anterior e, pior, as faz na maioria das vezes por meio de Medidas Provisórias. A troca de favores com parlamentares, criou um verdadeiro mercado de votos no Congresso Nacional, lugar onde troca-se de partido como se troca de roupa, sob a batuta dos acordos com o Palácio do Planalto. A feira da lavagem de dinheiro e do financiamento ilícito de campanhas eleitorais virou fato corriqueiro, fazendo com que o arquivamento da CPMI do Banestado sequer seja notícia de canto de páginas dos principais jornais do país. Aliás, país este cuja imprensa se confunde com os folhetins de defesa dos interesses de seus anunciantes.

O desafio, portanto, é pensarmos em alternativas democráticas sem as referências concretas de aproximação dos princípios da igualdade, da liberdade e da soberania popular. Bandeiras do passado, que a maioria de nossos representantes sequer demagogicamente ousa levantar. Definitivamente, não temos nada a comemorar.

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