Olhar Crítico - Comunica Digital

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ISSN 1808-785X

Minha mãe não era uma "amélia"

Elda Alvarenga

Elda Alvarenga, Doutora em Educação PPGE/Ufes.

Minha mãe, levada no ano passado pela Covid, não era uma “amélia” no sentido machista que o termo assumiu. Nesse primeiro dia das mães sem ela, ainda indignada com a forma irresponsável com que essa doença foi e ainda tem sido tratada no Brasil, resolvi registrar porque ela não era uma “amélia”.

Segundo me relatou, em uma de nossas conversas, sempre emocionada ao falar da minha vó, dizia não saber as motivações para o registro com esse nome. Mas, me arriscando nos estudos de Ginzburg, posso afirmar que existem indícios de que a escolha se deve ao clássico da música popular brasileira, lançado em 1942, mesmo ano em que ela nasceu, no mês de novembro. Com letra de Mário Lago e música de Ataulfo Alves, a música, de acordo com Euler de França Belém (2015)1, faz referência à admiração que o baterista Almeidinha tinha por Amélia dos Santos Ferreira, empregada de Araci (ou Aracy) de Almeida. Não vou entrar aqui nas diversas controvérsias que envolvem a música, muito menos na qualidade poética ou musical da obra, mas no que a sua letra, vista a partir dos estudos de gênero, me indica e principalmente me leva a afirmar que apesar do nome, minha mãe não foi uma “amélia”, que assumo aqui no minúsculo para identificar o termo, não como um nome próprio, mas, como a representação de um tipo de mulher, elogiada, enaltecida, desejada. Me interessa aqui, à medida que destrincho a letra, afirmar que minha mãe não se enquadrou, ainda bem(!), nesse modelo calado, submisso e subserviente de mulher.

“Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Nem vê que eu sou um pobre rapaz”
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo que você vê, você quer [...]”

A Amélia, minha mãe, não era uma mulher de luxo e de riqueza. Ela sabia que como casou com “um pobre rapaz” e, da mesma forma da musa da música, se aventurou a ter nove filhos, ela teria que lutar, junto com ele, pelo sustento de sua família. Todos os luxos que teve durante a vida foi conquistado com muita luta e muito suor. Luxo para ela era, antes de tudo, a educação das sete filhas e dois filhos e, por isso, trabalhou muito dentro e fora da esfera doméstica.

“[...] Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
E quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, que se há de fazer [...]”

Da mesma forma, nunca aceitou passar fome. Ela buscava estratégias contra a miséria: costurava, cozinhava e, se fosse preciso, recorria a pessoas solidárias que, muitas vezes, ajudavam, quando podiam. Ela superava esse orgulho, porque não aceitava que os/as filhos/as passassem fome, contrariando inclusive meu pai que, na condição socialmente construída de provedor da família, tinha vergonha de pedir ajuda. Por fim:

“[...] Amélia não tinha a menor vaidade
(Amélia é que era mulher de verdade) [...]”.

Vaidosa desde jovem, a D. Amélia, minha mãe, fazia questão de estar sempre impecavelmente arrumada. As unhas eram feitas semanalmente. O cabelo, sempre que necessário, era cortado para atender aos desejos da sua aparência, mesmo que meu pai, diga-se de passagem, sempre os preferissem longos. Sobre isso, me arrisco a dizer que a calvície precoce, que reduziu a linda cabeleira da juventude a poucos fios na velhice, era uma das causas da idade que a ressentia. Ela adorava ser maquiada pelas minhas irmãs e sobrinhas e, nas atividades formais, como formaturas e casamentos, se arrumava muito mais que algumas de suas filhas (em especial esta que vos fala).

Por isso e por outras características de mulher valente, batalhadora, falante, vaidosa é que minha mãe, apesar do nome, nunca se enquadrou no imaginário de uma “amélia”. Ela foi, certamente, meu primeiro estranhamento quanto aos papeis socialmente construídos para as mulheres. Com ela aprendi, muito cedo e dentre outras coisas, que amar não é sinônimo de submissão. Viva Amélia dos Reis Alvarenga, minha mulher de verdade!


Notas

1- Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/a-historia-da-criacao-da-musica-amelia-por-mario-lago-e-ataulfo-alves-33004/