Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Luta de classes x guerra santa

Helder Gomes

O debate mais recente em torno do negacionismo, uso das ciências e manipulação midiática nos convida a avançar nas reflexões a respeito das relações de poder e, também, sobre as possibilidades de sua superação. A combinação da (re)emergência de governos vinculados à extrema direita com o prolongamento da crise pandêmica tem gerado uma série de manifestações políticas, artísticas, religiosas, entre outras, num momento em que se evidencia cada vez mais a gravidade da crise econômica mundial e em que se aprofundam as ameaças de colapso ambiental no planeta. Interpretar essa diversidade de movimentos, muitos deles controlados pelo alto, ou sob o comando de interesses submersos, pouco visíveis, não tem sido uma tarefa simples mesmo, mas, em meio a tanta confusão, talvez possamos aproveitar alguma coisa que preste.

O risco tem sido surfar nos binarismos da moda. Defender a ciência dos ataques negacionistas, por exemplo, não pode significar esquecermos tudo que aprendemos acerca das várias formas de produção e sobre a diversidade de usos dos conhecimentos científicos ao longo dos últimos séculos. Não custa lembrar: vivemos sob o domínio da lógica da acumulação capitalista, segundo a qual pouco importa produzir pão, ou armas, desde que se encontre quem compre.

Devemos atentar, portanto, para a existência de várias ciências. Até porque, sabemos, boa parte das concepções científicas estão voltadas para a formação ideológica de que vivemos sob a égide do melhor modelo que a humanidade pode produzir em termos de organização social e política: o Estado democrático de direito, o qual surgiu para se contrapor à barbárie. Ideologia binária pura, da melhor safra, não importa o ano.

Outra armadilha muito comum, em tempos de vulgarização de tudo, tem sido acreditar na indistinção entre a aparência das coisas do mundo e sua essência humana. É da nossa própria natureza preferirmos sempre viver no automático, na rotina cotidiana, ao contrário de ficar refletindo sobre o sentido disso ou daquilo, filosofando, feito maluco. Para facilitar tal escolha, nada melhor que reproduzir a confusão entre retórica e explicação, a partir da qual a narrativa passa a ser o real e os fenômenos autoexplicativos, pois, basta olhá-los para entendê-los, uma vez que tudo está logo ali, na cara.

Por isso tem sido tão habitual, ou mais fácil, reproduzir no debate vulgar a ideia de que os cientistas não conhecem a “política como ela é”, por exemplo. A partir de posições assim, é possível difundir para todas as áreas do saber a concepção das divergências como se fossem pura e simplesmente disputas de opinião: “cada um tem a sua”. Nessa linha, a cada momento os próprios fenômenos tornam algumas pessoas guardiães do candeeiro, ou, da sabedoria, ao mesmo tempo que convertem as demais em fanáticas, desprovidas de inteligência.

Nesse balaio de gato, o moderno virou sinônimo de atraso e a luta de classe foi sutilmente convertida em guerra santa. Fica mais fácil colocar num mesmo saco aquelas pessoas com quem se têm alguma divergência, classificando-as como fundamentalistas, pois é muito simples se colocar como porta-estandarte do saber. É muito mais complicada essa história de que o debate político requer algum fundamento, pois, parece nítido que na prática a teoria é outra e por aí vão os argumentos de quem está amalgamado na esparrela das aparências.

Parece vivermos num cipoal caótico de narrativas. Nele, a prática vulgar é atacar o mito alheio, venerando e apresentando supostos atributos de outro fruto das mitologias reinantes, mesmo que no íntimo se saiba que o revezamento de mitos em nada altera a essência do deus mercado.

Talvez seja por isso que El Che, tido pelas tais pessoas do bem como “o sanguinário”, tenha nos indicado um caminho totalmente diferente, para vivermos livres e associados, em busca da vida em comum. Dizia ele que a mudança efetiva viria da permanente formação de um outro ser humano, livre da armadilha das aparências, por isso mesmo capaz de perceber que apenas coletivamente poderemos aproveitar melhor a vida, desprezando de vez a ideia do egoísmo como o motor da história.

Feliz construção do ser humano novo!!!

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