Interesses e prioridades seletivas nas conferências da ONU
Winnie Overbeek, coordenador do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais.
Entre os muitos fenômenos da atualidade, que nos deixam perplexos, merecem destaque as conferências organizadas anualmente pela ONU com o objetivo de contribuir com o combate das mudanças climáticas. A última da série ocorre este mês de novembro em Glasgow, Escócia.
Por um lado, vemos um processo focado num determinado problema: as mudanças climáticas. Sua principal causa é bem conhecida, a intensa queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos 250 anos, em especial no Norte global, cuja solução seria deixar o petróleo, o carvão mineral e o gás natural debaixo do solo.
Por outro lado, o texto do acordo ao qual os governos participantes destas conferências conseguiram chegar e que tanto celebraram, o Acordo de Paris, de 2016, não faz menção nenhuma à principal causa do problema, muito menos a qualquer passo ou estratégia de transição a seguir para que a solução bem conhecida se tornasse realidade.
Enquanto a grande massa da população mundial que mais sofrerá dos impactos do aquecimento global sai como grande perdedora desse processo trágico, as elites do capital mundial produtivo e especulativo só tem motivos para festejar: saem na história como vencedoras, aquelas que supostamente irão resolver a crise, que elas mesmo provocaram.
Vejamos! No início dos anos 1990, grandes empresas de petróleo, com medo de perder seus lucros, negaram a existência do aquecimento global. Se basearam em estudos realizados por cientistas, que elas mesmas financiaram. Essas empresas só resolveram mudar de posição quando entenderam, já no final dos anos 1990, que poderiam transformar o problema do atual caos climático numa nova oportunidade de negócios e de lucro.
Conseguiram transformar um problema grave, parte e resultado de um processo secular de colonização, de racismo estrutural, escravidão e outras formas de opressão e destruição, num futuro promissor para seus negócios, reduzindo o problema e o debate a uma coisa só, o carbono e sua presença em excesso na atmosfera: este é nosso problema!
Os mercados de carbono que foram sendo criados permitem que as grandes empresas poluidoras possam continuar poluindo por mais algumas décadas, enquanto procuram compensar isso de forma barata, conservando uma floresta em outro lugar, transformando as comunidades que lá residem, que já fazem isso há muitas gerações, em ameaças para essas florestas. Os créditos de carbono, que são os direitos de poluir, são determinados em base de cálculos sobre cenários futuros fictícios, portanto altamente passíveis à manipulação e especulação, algo bem familiar para as elites do capital mundial.
Em Glasgow, os governos esperam concretizar acordos sobre o funcionamento desses mercados de carbono, com a participação dentro da Conferência de mais de 500 lobistas representando as grandes corporações de petróleo, conforme denunciou a ONG inglesa Global Witness. Afinal de contas, o grande capital não é necessariamente contrário a regulamentações por parte do Estado, desde que ele mesmo possa sentar à mesa de negociação.
As organizações sociais e ambientais que costumam frequentar as conferências do clima não têm este mesmo privilégio. E mais, sua presença numérica em Glasgow é apenas um terço do normal, devido a um verdadeiro ‘apartheid’ da vacinação a nível global, que dificulta a entrada de pessoas no Reino Unido, sobretudo aqueles participantes de países africanos, onde poucas vacinas podem chegar. Estes participantes africanos, que foram barrados pelo governo do Reino Unido, são, aliás, de países que menos têm contribuído com o caos climático, mas, que tendem a sofrer seus maiores impactos.
Junto com os mercados de carbono veio a falsa ideia da suposta “neutralidade” em carbono. Governos e empresas competem entre si, em Glasgow, sobre quem consegue apresentar metas mais audaciosas para quando pretendem alcançar a tal da neutralidade zero em emissões de carbono, alguns projetando 2050, outros até em 2030. Nenhum governo ou empresa, no entanto, sabe explicar em detalhes como pretende chegar à meta anunciada.
Mas, para as elites do capital mundial, o que realmente importa é que essas metas, sobretudo a redução do problema a um debate apenas em torno do carbono, abram o caminho para novos mercados, uma vez que se tornaram necessárias para a chamada economia de baixo carbono. Afirmam que essa nova modalidade econômica salvaria nosso planeta, pois, afinal, a energia seria “limpa”, sem carbono. A partir desses argumentos, aqueles que comandam o grande capital nos convocam a juntar forças, em torno do que eles chamam de um novo grande acordo verde, a new green deal. Será?
A tal economia “limpa” significa, por exemplo, que grandes montadoras de automóveis partem para a fabricação de carros elétricos, literalmente o ‘carro-chefe’ desta nova economia verde. São veículos movidos a motores elétricos, com baterias complexas e pouco recicláveis, as quais já estão gerando novas cadeias produtivas, evolvendo o processamento de centenas de minerais metálicos diferenciados, cuja produção que estão levando a uma apropriação e destruição de novas áreas de extração no Sul global. Surge, assim, outra etapa de neocolonização de territórios, muitos compostos por florestas, para dar conta de uma nova onda de consumo, acessível apenas às elites residentes nos países europeus e em alguns outros localizados no Hemisfério Norte.
Enquanto isso, as grandes empresas de petróleo em Glasgow só falam em Soluções Baseadas na Natureza, a mais nova “receita” para chegar a tal de neutralidade de carbono. Calcula-se uma área do tamanho de quase um Brasil inteiro que precisaria ser plantada com árvores para dar conta da compensação necessária – porém, apenas temporária, no melhor cenário imaginável – em função da queima continuada de combustíveis fósseis. Ao mesmo tempo, longe dos holofotes de Glasgow, estas mesmas empresas estão iniciando novos projetos de extração de novos campos de petróleo, aprofundando ainda mais o caos climático.
Vale lembrar que, para alguns dos bilionários, este nosso planeta ficou pequeno demais. Se, por um lado, financiam ONGs conservacionistas, supostamente para proteger florestas enquanto especulam e lucram com a promissora economia de baixo carbono, eles também inventaram um novo hobby e atividade de lazer: brincar de astronauta e viajar para o espaço – queimando muito petróleo aliás – para se livrar do caos que está cada vez mais tomando conta do cenário por aqui.
Difícil ter uma prova mais contundente da absoluta falta de compromisso das elites capitalistas com nosso planeta e com o futuro da humanidade. Talvez, essa loucura insana ajude a acordar mais pessoas, permitindo uma percepção mais ampla de que é preciso fazer algo a respeito. Não apenas combater essas figuras e suas loucuras, mas, sobretudo, combater o sistema que os enriqueceu e continua os enriquecendo, agora com os tais “negócios verdes”.
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Declaração NÃO às Soluções Baseadas na Natureza!