Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A mulher no espaço urbano: ontem e hoje

Priscilla Lauret Coutinho

Priscilla Lauret Coutinho, Graduada em História (Ufes, 2003), pós-graduada em Gestão Educacional (Univ. Castelo Branco, 2006) e mestranda em Ensino de Humanidades (Ifes). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação na Cidade e Humanidades (Gepech-Ifes), é professora de História (SEDU-ES) e atua na formação de professores/as de Humanas (SEME-Vitória).

Caminhando pela cidade de Vitória como uma flâneuse, termo cunhado pela escritora Lauren Elkin para definir uma mulher errante, vagueando a esmo, te convido a refletir sobre a condição da mulher no espaço urbano. Será a cidade um espaço acolhedor para o ser feminino? Será que nossas roupas, nossos corpos, nossas falas e gestos ainda suscitam questionamentos sobre nosso direito de estar ali no espaço público, outrora tão restrito ao homem? Será que ainda somos julgadas pelo tamanho da saia, do salto, pela cor do batom ou das unhas?

É fato que muita coisa mudou desde que surgiu a divisão sexual do trabalho na Pré-História ou a consolidação do Estado na Antiguidade Clássica Europeia. Houve experiências exitosas de lideranças femininas, como as Candaces no reino de Kush. Ou o movimento das beguinas de Flandres, mulheres que criaram comunidades isoladas e sem homens. Entretanto, na grande maioria das culturas, ao longo dos séculos, o espaço feminino esteve muito restrito ao espaço doméstico, ao cuidado da casa e dos filhos e filhas.

Transgressões não faltaram à ordem vigente, como lembra a professora Isabelle Anchieta (2021), citando mulheres que agiram contra o que era tido como natural em seus “papéis femininos”. Quando curandeiras “diabolizadas” em suas comunidades, por conhecerem as propriedades de ervas e frutos, usaram esse poder sobrenatural que lhes era conferido para obter prestígio superior aos clérigos, fugindo assim da fogueira, durante o período da Inquisição.

Ou quando souberam driblar a pouca instrução recebida no Brasil Colonial com códigos expressos na cor das flores que usavam a fim de garantir a comunicação silenciosa com amigos ou amantes (DEL PRIORE, 2020).

Ou quando lideraram quilombos, como Tereza de Benguela, na região do Mato Grosso, onde criou parlamento e sistema de defesa armada por pelo menos duas décadas, mesmo após a morte do companheiro.

Ou quando lembramos do movimento antiescravagista, a campanha pelo sufrágio feminino, os movimentos operários e trabalhistas a partir da Revolução Industrial (DAVIS, 2016). É bom lembrar que o estopim da Revolução Russa de 1917 foi uma greve de mulheres, nas ruas, coletivamente.

Ah… as ruas… As ruas de grandes cidades estiveram sempre “repletas de presença” (ELKIN, 2022, p.16), de acontecimentos coletivos que marcaram esses espaços de alguma maneira. Contudo, a liberdade para uma mulher vagar sozinha, parar para um café, conversar despretensiosamente, observando a rotina da cidade e de seus habitantes implicava e ainda implica ter posses e tempo disponível para isso. E até pouco tempo, cabia também algum pré-julgamento, caso essa mulher estivesse desacompanhada do pai, do irmão ou do marido.

As ausências de mulheres nos espaços de poder, em lideranças sociais e no cotidiano da cidade não são mero acaso. A invisibilidade da mulher na cidade foi construída sob a lógica do patriarcado em cada esquina, viela, escultura, escada e esse é um processo cultural produzido ao longo da história da humanidade. O que não é visto, não é lembrado.

Na cidade de Vitória, por exemplo, dos 55 monumentos esculpidos como reconhecimento a pessoas, apenas cinco são mulheres (NADER, 2017), apenas uma é negra, evidenciando assim grande desigualdade de gênero, raça e classe social nesse processo de representação, que eterniza nomes e imagens de pessoas muito importantes para a construção da cidade, mas excluindo boa parte das mulheres, também responsáveis por essa história.

Nas últimas cinco décadas, tivemos alguns avanços sociais importantes, principalmente no que se refere ao acesso aos estudos, ao esporte e à arte. Temos mais mulheres nas universidades, na posição de juízas, cientistas, árbitras, expondo em galerias renomadas, embora os grandes salões ainda abriguem o corpo feminino como musa, como nudez artística, como natureza e alegoria, sem nome, sem sobrenome.

Já há jogos de futebol feminino sendo televisionados, vejam só. Os salários das jogadoras da seleção feminina de futebol dos Estados Unidos estão finalmente equiparados (desde 2022) aos dos homens, depois de ganharem 4 olimpíadas e 4 Copas do Mundo, claro. Nada como um grande “poder de barganha”!

Em 1970, só 20% de todas as pessoas trabalhando no Brasil eram mulheres. Em 2020, essa proporção havia dobrado, com 42% de mulheres e 58% de homens. Consideradas apenas as cinco carreiras mais bem pagas do país, o avanço foi ainda maior: em 1970, as mulheres representavam apenas 11% dessa força de trabalho mais qualificada e, em 2020, já eram 54%, segundo estudo feito pela economista Laísa Rachter. A diferença salarial nos grupos do topo, porém, mudou bem pouco de 1970 para cá, e as mulheres ainda seguem ganhando cerca de 30% menos que os colegas homens nas mesmas profissões.

Mesmo graduadas, mestres e doutoras, ainda acompanhamos cada passo dos filhos em idade escolar; ainda faltamos ao trabalho para levar a consultas e tratamentos médicos e odontológicos; ainda nos desculpamos pela casa um pouco bagunçada e talvez um pouco suja quando visitas chegam sem avisar; ainda que muito experientes, feministas, conscientes de todas as lutas e movimentos, ainda nos culpamos pela geladeira vazia ou pela nota ruim que a criança porventura tirar.

Sim, muitos desafios precisam ser superados e não devemos romantizá-los! Não precisamos ser chamadas de guerreiras ou heroínas. Queremos dividir o fardo, partilhar as dúvidas, não somente as dívidas, planejar junto, mesmo se for apenas a pizza do fim de semana!

Sabemos que visibilidade e equiparação social com os homens ainda estão muito distantes, principalmente para as mulheres pretas e indígenas. Mas precisamos valorizar alternativas e práticas de resistência coletivas fomentadas nos espaços de aprendizado, solidariedade e luta política, dentro e fora do país. E vejam que digo “luta política” e não político partidária, que embora sendo um espaço legítimo de formação humana, não é a única forma de obter credibilidade e de ser ouvido/a.

Lembrei da fala de uma militante da Educação Especial durante uma reunião dia desses. "O movimento é nosso. Nós que carregamos o fardo. Nós que temos que ter a fala. Nós... Nós..."

Daí pensei nesses "Nós", fazendo um pequeno trocadilho, creio que deveriam ser desatados justamente através dessa quebra de protagonismo, na horizontalidade. Precisamos de lideranças potentes, sim, em várias frentes, mas também precisamos de companheiras e companheiros ao nosso lado nas lutas, ajudando a promover mudanças estruturais e de mentalidades tão importantes e necessárias para todas/os/es. Identidade, sentimento de pertencimento e lugar de fala são elementos importantes na construção dos movimentos, mas não podem segmentar e segregar pessoas, pois são nos coletivos que nos fortalecemos. Foi, aliás, a capacidade de vivermos em grupo que manteve o homo sapiens vivo, em detrimento de outras espécies do gênero homo(HARARI, 2016).

Portanto, enquanto continuarem existindo discursos de ódio à mulher, enquanto houver crimes contra a mulher, enquanto houver diferenciação salarial para exercer a mesma função que um homem… e tantas outras injustiças e violações de direitos contra as mulheres pelo mundo, haverá razão para nos unirmos, haverá razão para o 8 de março, haverá razão para a luta feminista.

Precisamos seguir unidos/as, caminhando!

E para lembrar de uma mulher de luta que abriu mão de seu filho para não fazê-lo adoecer junto dela, lembremos da dona Carminha, uma Maria, entre muitas, abandonada pelo companheiro bem no início da gravidez e que foi homenageada pelo menino que cantou assim…

Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida


Referências

ANCHIETA, Isabelle. Imagens da Mulher no Ocidente Moderno. São Paulo: Edusp, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEL PRIORE, Mary. Sobreviventes e guerreiras: uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000. São Paulo: Editora Planeta, 2020.

DOMINGUES, Joelza Ester. https://ensinarhistoria.com.br/linha-do-tempo/dia-nacional-tereza-de-benguela-mulher-negra/ - Blog: Ensinar História.

ELKIN, Lauren. Flâneuse: Mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres. São Paulo: Fósforo, 2022.

FARIA, Willis de. Catálogo dos Monumentos Históricos e Culturais da Capital. Vitória: Lei Rubem Braga, 1992.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2016.

NADER, Penha Mara Fernandes. A sutileza da discriminação de gênero na nomenclatura dos logradouros públicos. Vitória (ES). 1970-2000. 2007. 102 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Vitória, 2007.

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