Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O racismo estrutural como discurso liberal

Igor Vitorino da Silva

Igor Vitorino da Silva, professor de História formado pela UFES e mestre em História pela PGHIS/UFPR.

Não apresentarei credenciais, porque não as tenho. Gostaria de dar apenas um palpite num debate sobre o tema do racismo estrutural. A compreensão de que há uma maneira de tratar indivíduos negros inscrevendo-os em determinadas relações, lugares, identidades e histórias, onde já está prefigurado seu destino. Ou seja, a produção de um tipo de representação social produzida nas relações de poder, que impõem uma forma de subjetivação dos indivíduos, em que opera a discriminação sistemática e aberta de hierarquização das pessoas a partir dos seus traços biofísicas e culturais.

Esses indivíduos racializados, ou melhor, qualificados, inscrevem-se em um lugar da sociedade já prefigurado como natural para eles. Nesse lugar, enquanto experiência de déficit (Você é você mesmo? Quem é você?) nas relações de poder, são orientados pela universidade do homem branco, que se compreende fora de processos racializados, pois, justamente, falaria de um lugar de verdade e credibilidade universais.

O que temos a ver com essas práticas sociais? Somos criados e inventados por ela, nascemos na sua herança histórica e cultural, perpetuando-as, renovamo-las e, por vezes, podemos mudá-las. Vivemos seus efeitos sobre a vida social. Ao pensarmos que os desiguais são iguais e compreendermos que há oportunidades iguais para todos, transformamo-nos máquinas legitimadoras daquela.

É justamente uma constituição de elite negra/pequeno burguesa/classe média que será, ao longo da história brasileira, a prova social e narrativa de que não haveria nessa sociedade paz e harmonia, especialmente se esses negros saíssem de seus lugares prefigurados. Ou seja, se eles rompessem a hierarquia social celebrada como natural e desejada. Dessa forma, construir uma política de tratamento diferenciado dos desiguais significaria construir oportunidades que pudessem garantir o reconhecimento social e a igualdade social daqueles.

É essa sequência que precisamos discutir, pois o racismo estrutural não deixa de racializar, ele precisará de novos indivíduos para ocupar os lugares subalternos, pois continuamos vivendo numa sociedade hierarquizada. As políticas públicas de reparação não consolidam um mundo antirracista, e sim, abrem brechas e espaços que podem se tornar condições para a emergência de lutas sociais e políticas em busca do fim das hierarquias sociais e políticas. Quem são os derrotados dessa sociedade? Quem são os abjetos produzidos por essa estrutura permanente e eterna, que parece operar sem sujeito transformando indivíduos em raças?

As práticas de políticas de reconhecimento social e de debate de racismo estrutural escondem um grande segredo: a modernidade é uma fábrica de exclusão. O pacto social democrático, mesmo almejando o equilíbrio das partes, mantém-se dependente de formas de produzir a vida que mantêm, como todas as contradições e ambivalências, a produção da social da escassez de reconhecimento social, político e econômico.

Mas do que falam os militantes quando usam a categoria operatório-prático-teórica racismo estrutural? Luta contra a desigualdade? Ou contra o rompimento com os processos de produção da vida capitalista? O problema continua e, quem ocupará o “lugar do subalterno”, já que o racismo é estrutural? Sairemos de escravos para senhores na cidadania de geometria variável? Sem discutir a cidadania de geometria variável, seguimos reproduzindo as mesmas hierarquias celebradas como vitória do "empoderamento"? Ou seja, sem discutir que no Brasil há cidadãos mais cidadãos que outros, como romperemos com o racismo e a racialização que produz negros?

A operação discriminatória que opera produzindo corpos segue em alta velocidade e sem destino, os processos de produção de inferioridade seguem firmes e vigorosos na sociedade complexa capitalista. Se não rompermos com a produção social dos perdedores, estaremos apenas, infelizmente, promovendo a troca de lugares. E pior, talvez, produzindo uma elite negra que não temos a certeza de que manterá o discurso de apoio e aliança às lutas antirracistas, de recusas às biopolíticas e ao racismo de Estado que vigoram na sociedade contemporânea. A segunda abolição está ainda para ser conquistada. Dessa forma, por enquanto, o racismo estrutural transforma num discurso liberal muito bem apropriado as engrenagens da máquina de acumulação capitalista sob a bandeira da responsabilidade social e do multiculturalismo. Seguimos na inclusão subordinada.

Segue um trecho da obra de Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein (2021), publicado na página de divulgação da Editora Boitempo, no Facebook:

 

O racismo não está regredindo, mas se encontra em progressão, no mundo contemporâneo. Esse fenômeno inclui desigualdades, fases críticas, e é preciso tomar cuidado para não confundir suas manifestações; em última análise, ele só pode ser explicado por causas estruturais. Na medida em que o que está em jogo aqui – por meio de teorias eruditas, racismo institucional ou popular – é a categorização da humanidade em espécies artificialmente isoladas, é preciso que exista uma cisão violentamente conflitual no âmbito das próprias relações sociais.

Não se trata, então, de simples ‘preconceito’. Além disso, é preciso não só que haja transformações históricas tão decisivas como a descolonização, mas também que essa cisão seja reproduzida no contexto mundial que criou o capitalismo. Não se trata, assim, de uma sobrevivência nem de um arcaísmo. No entanto, isso não é contraditório com a lógica da economia generalizada e do direito individualista? De forma alguma. Nós dois pensamos que o universalismo da ideologia burguesa (portanto, também seu humanismo) não é incompatível com o sistema de hierarquias e de exclusões que, antes de mais nada, adquire a forma do racismo e do sexismo. Do mesmo modo que o racismo e o sexismo adquirem a forma de sistema.


Referências

BALIBAR, Étienne, WALLERSTEIN, Immanuel. Raça, nação, classe: as identidades ambíguas. São Paulo: Boitempo, 2021.

BALIBAR, Étienne, WALLERSTEIN, Immanuel. Races, nations, classes, les identités ambigües. Paris: La Découverte, 1990.

BALIBAR, Etienne. Racism and nationalism. In: BALIBAR, Etienne; WALLERSTEIN, Immanuel. Race, Nation, Class: ambiguous identities. Londres: Verso, 1991.

______. Racisme et nationalisme: une logique de l’excès. In: WIEVIORKA, Michel (Ed.). Racisme et modernité. Paris: La Découverte, 1993.

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