Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

PROFESSORA SIM, TIA NÃO: CARTAS A QUEM OUSA ENSINAR. NOTAS SOBRE A CARTA AOS PROFESSORES DE PAULO FREIRE1

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Debora da Costa Archanjo
Edina Antonia Morozesk
Elda Alvarenga
Gilmar Rodrigues Fontoura
Moni Kely Pessoa Luiz
Rafael Martins Pereira
Salatiel da Silva e Souza
Tadeu Inácio de Deus
Tatiane Oliveira da Conceição

Cartas a quem ousa ensinar é parte do livro “Professora sim, tia não!”, publicado em 1993. Nela, Paulo Freire escreve especificamente aos professores e professoras sobre questões relacionadas ao ato de ensinar, aprender, ler e escrever. Aborda também a importância da aprendizagem e da relação dialógica entre teoria e prática. Freire parte do princípio de que o/a professor/a precisa estar aberto/a não apenas para ensinar, mas também para aprender. Ao longo da carta de Freire aos professores, podemos destacar algumas reflexões e ensinamentos sobre o papel do/a educador/a. As palavras ensinar, aprender, teoria, prática, experiências, leitura e escrita nos convidam a refletir criticamente sobre a prática docente. Nesta direção, Freire (2003) afirma que:

 

A responsabilidade ética, política e profissional do ensinante lhe coloca o dever de se preparar, de se capacitar, de se formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua experiência docente, se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de sua prática (FREIRE, 2003, p. 259-260).

A carta discute o significado de ensinar. O autor aponta a perspectiva de que o processo educacional ocorre como uma troca na qual não existe ensinar e aprender sem uma relação mútua entre professor e aluno e reforça a necessidade do reconhecimento que o ensinar é um processo contínuo de aprendizado, mas alerta que isto não autoriza o ensinante a ensinar aquilo que não sabe.

O autor defende que, além de ser importante reconhecer a reciprocidade da aprendizagem e do questionamento e do repensar, o professor tem uma responsabilidade política e social com o processo de ensino. Ele deve se formar constantemente pois é preciso buscar conhecimento e qualificação em um processo contínuo que engrandece e melhora a qualidade de seu ato de ensinar. Freire nos convoca a uma constante reflexão quanto à formação e à prática docente, denominando-as como um ato de responsabilidade. Por mais que o docente acredite que já está preparado para ensinar é preciso refletir de forma crítica sobre o seu percurso de formação e, ainda, compreender que o conhecimento está em constante mudança em relação à teoria e prática do que se propõe a ensinar. Desta forma, constitui possibilidades para o alcance de novas aprendizagens e, consequentemente, para novas experiências. Freire considera a formação continuada como uma das ferramentas que contribui para se estabelecer a relação reflexiva para a continuidade da aprendizagem. Ela é uma atividade permanente que exige disposição, preparo, observação e estudo ao encontro da prática docente.

Nesta direção o autor explicita que “estudar é desocultar, é ganhar a compreensão mais exata do objeto, é perceber suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria” (FREIRE, 2003, p. 264). O autor também salienta que estudar é desvendar. É revelar um saber ou saberes, é conhecer algo ou algum objeto, ou ainda, aprimorar aquilo que sabemos. Estudar é libertação, o estudo é libertador. Adquirimos compreensão mais exata do objeto, das pessoas, do mundo, ou seja, entendemos melhor, com mais nitidez, nós mesmos, os outros, os contextos e as possibilidades de análises, de perspectivas e percepções do mundo.

Nessa linha de raciocínio, o estudo permite nos arriscarmos em “outros mundos”, na aventura do saber e na busca pelo conhecimento em um movimento constante de criação e recriação. A leitura e a escrita são “ferramentas” indispensáveis e primordiais nesse processo. Leitura crítica, paciente e profunda para, em consequência, produzir boa escrita, bons textos, afinal “ninguém escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar” (FREIRE,2003, p. 267). As primeiras braçadas do nadador são à beira mar ou às margens do rio. Não aprendemos a nadar em alto mar. Com a escrita é assim também: uma frase, algumas linhas, uma monografia, depois um livro. É uma prática diária, persistente, trabalhosa e libertadora.

Ensinar certamente traz consigo o poder de transformação. Quando aprendemos a ler e escrever, temos mais possibilidades de fazer uma leitura crítica do mundo, porque passamos a reconhecer outros objetos e objetivos antes não conhecidos. Leitura e escrita afloram a criticidade à medida que delas surge a pluralidade de ensino. Nesse sentido Freire ressalta que ler não é apenas um ato mecânico de memorização, é uma operação inteligente, difícil, mas gratificante. Do mesmo modo, lembra o autor que a oralidade caminha junto com a escrita, visto que a leitura do mundo precede a leitura das palavras. Freire ainda chama a atenção sobre o equívoco, muitas vezes cometido por professores e professoras, ao dissociarem a leitura e a escrita tanto durante o processo de aprendizagem como também da produção do conhecimento. Sendo a leitura e a escrita dois exercícios diretamente relacionados que sustentam um ao outro. O autor em sua experiência, relata este fato ao constatar estudantes de pós-graduação encontrando dificuldade para escrever uma dissertação.

É necessário pensar nas possibilidades de uma educação orientada/direcionada para utilização de ferramentas que ampliem a formação do aluno em um processo de estudo dinâmico, que o ajude na compreensão de conteúdos os quais não estão propriamente visíveis. Nesse sentido, o autor propõe o uso de uma linguagem simples e acessível, tanto na formação inicial dos professores, quanto em todo o percurso acadêmico. Salienta ainda que o exercício estimulado da leitura ajuda na qualidade e no desenvolvimento, pois não existe leitura difícil, existe o diferente nível de entendimento do educando. Assim, Freire defende que o escritor deve procurar ser o mais explícito possível, a fim contribuir de forma simples, porém, sem acender o simplismo. Para ele, a escrita científica, acadêmica, deve procurar tornar-se acessível. No entanto, o leitor, não deve esperar, ou exigir que o escritor entregue algo feito e pronto. A compreensão deve ser forjada, trabalhada, pelo leitor estudante que, de forma paciente, desafiadora, persistente que respeite e considere o nível de formação do pesquisador, de forma instrumentada para um bom desempenho e assim à construção do saber. Ele reforça a ideia de instrumentação para construção do conhecimento.

Nessa linha de raciocínio, o autor utiliza-se da analogia do pedreiro: “assim como um pedreiro não pode prescindir de um conjunto de instrumentos de trabalho, sem os quais não levanta as paredes da casa que está sendo construída, assim também o leitor estudioso precisa de instrumentos fundamentais sem os quais não pode ler e escrever com eficácia” (FREIRE, 2001, p. 265). Assim como o pedreiro desenvolve e consegue êxitos na sua construção, ao obter um conjunto de ferramentas adequadas, o leitor não perde tempo ao se valer de várias ferramentas como dicionário e outras fontes de pesquisa, além das comparações de outras fontes bibliográficas com autores que abordem linguagens menos complexas. Isso diz muito sobre a ausência da estimulação desses dois sustentáculos basilares para construção de conhecimento em nossa educação. A simbiose entre ler e escrever de fato deveria ser desenvolvida e fomentada já na tenra idade educacional e durante todo processo de escolaridade.

Freire deixa explícito que não é sua intenção estabelecer uma regra que deve ser seguida e aponta que a carta tem a finalidade de ser uma reflexão na qual, os/as leitores/as se questionem sobre como ensinam e sejam direcionados a criticidade sobre as diferentes formas de ensinar, nos diferentes contextos. Nesta perspectiva, a preparação de quem ensina, depreende de um fazer crítico e criador, em direção a constante reflexão do exercício sobre o ato de ensinar, sendo a leitura fundamental neste processo. A leitura deverá ser acompanhada do ato reflexivo, e não de memorização mecânica. Ler e refletir são fundamentais, pois, criam possibilidades de compreensão, que Freire denomina como leitura de mundo.

Outro ponto da carta de Freire aos professores/as que chamou a nossa atenção diz respeito à relação entre estudo e ensino crítico. Afirma o autor: "Ao estudo crítico corresponde um ensino igualmente crítico que demanda necessariamente uma forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do contexto (FREIRE, 2003, p. 264)". Nesse sentido, ensinar e aprender se constituem dialógica e reciprocamente como uma via de mão dupla: ensinamos enquanto aprendemos e aprendemos enquanto ensinamos.

O processo ensino aprendizagem é qualificado, ressignificado quando educandos/as e educadores/as, cientes de seu próprio inacabamento e de seus alunos, compreendam criticamente a realidade. É preciso que como educadores e educadoras tenhamos, sobretudo, a compreensão de que somos sujeitos históricos, multifacetados e nos constituímos individual e coletivamente. Por isso, todo processo educativo deve ser balizado pela compreensão de que como sujeitos, mediados pelo mundo e precisamos respeitar as diferenças que se fazem presentes em todo processo humano.

Neste contexto, no ato de ensinar, fundamentado na vivência do docente em determinado contexto, o educador realiza uma análise mais complexa, buscando, assim, a melhor maneira de aproximar-se dos/as educandos/as. Essa aproximação pode proporcionar uma boa relação entre o educador e o aprendiz, pautada na consideração mútua, construída com a prática. Ressalta, ainda, ser preciso inserir os/as alunos/as no contexto social, despertar a curiosidade de aprender e contribuir para que se tornem mais críticos, ativos e reflexivos. Nesse processo, o/a docente percebe o lugar social de aprendizagem, o que contribui para que o ensino tenha mais condições de identificar a viabilidade dos métodos de ensino e aprendizagem utilizados, pois aprendemos ao longo da vida. Essa aprendizagem crítica, dialógica e socialmente contextualizada é um ponto de partida para processos solidários, participativos que visem uma educação igualitária.

Da mesma forma, quem ensina respeitando a identidade de quem aprende, contribui na educação segura e coerente do próximo, pois também aprendeu de um ensinante e, agora, ensina outros/as. É relevante que esse novo ensinante seja capaz de socializar o conhecimento aprendido e, ao mesmo tempo, continue aprendendo. Reconhecer que já passou por esse processo de ser educado e que agora é de sua responsabilidade tornar a ação de ensinar um momento rico cometido de valores.

Prosseguindo com a carta, o autor conta sobre a ocasião em que foi escolhido para um trabalho na Ilha de São Tomé, na África. A alusão ao ocorrido é utilizada para discutir sobre a importância da prática e da teoria para a formação profissional. É nesse momento que Freire afirma que, apesar de parecer dicotômico, é impossível que uma boa formação docente se exima de um desses dois conceitos, não é possível fugir da teoria, bem como é imprescindível pensar na prática docente.

Percebemos que o conhecimento abre novas visões sobre um cenário já conhecido. Deixamos de ter uma visão minimalista, para obtermos um olhar mais complexo. Partindo do pressuposto de que a “educação é um ato político” (FREIRE, 2007, p. 96), podemos considerar que a formação continuada também o é. Neste sentido, articular a questão da formação continuada com a da valorização dos profissionais da educação e a luta por uma escola pública de qualidade, desfaz-se a ideia de que o compromisso e toda a responsabilidade de formação, seja unicamente do professor. Portanto, a preocupação coletiva articulada com as políticas educacionais na garantia de espaços de afirmação da democracia e das oportunidades formativas, são garantidas a partir da ação coletiva e articulada com as políticas do Estado.


Notas

1 - Reflexões a partir da carta de Paulo freire aos professores, foi feita pelos alunos do curso de História da Ufes, atendendo a disciplina Metodologia EAD ministrada pela professora Aurelia Hubner Peixouto, a quem agradecemos pela oportunidade de produzirmos "juntos e misturados", apesar de estarmos em diversos municípios do Espírito Santo.


Referências

FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 14. ed. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2003.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. 30. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2007.

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