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ISSN 1808-785X

Memórias de professores/as que ensinam Matemática: porque “esta profissão precisa de se dizer e de se contar”i

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Luana Gonçalves Moulin
Marcellino Jose Callegari
Elda Alvarenga

 

“É que ser professor abriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser” (NÓVOA, 1999, p. 3).

A partir da afirmação de Nóvoa (1999), que utilizamos como subtítulo deste texto, apresentamos aos/às leitoras memórias e experiências vivenciadas por professores de matemática dos anos finais do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. Pretendemos, com isso, analisar como as memórias desses/as professores/as influenciaram e influenciam a sua atuação profissional.

Para alcançar nosso objetivo, desenvolvemosii um levantamento de natureza básica, com objetivo exploratório para investigar como as memórias da educação básica refletem na vida e na formação do/a professor/a que ensina matemática (GIL, 2017). Para tal levantamento, seguimos uma abordagem qualitativa, que é caracterizada por haver a interpretação das respostas por parte do pesquisador (PEREIRA et al, 2018). Utilizamos a plataforma Google Forms, para aplicar um questionário, composto por dezoito questões relacionadas ao perfil dos/as participantes e às suas lembranças enquanto estudantes da educação básica e docentes deste nível de ensino e, para preservar a identidade dos participantes, optamos por utilizar codinomes.

O levantamento contou com a participação de 27 professores/as que ensinam matemática de ambos os sexos, sendo 15 homens (55,6%) e 12 mulheres (44,4%). A maioria desses professores (66,67%) é graduada em Licenciatura em Matemática, com a observação de que apenas 26% têm a titulação de mestre e apenas 11,11% são doutores. As idades dos participantes variaram do mais jovem de 23 anos até o mais experiente, de 57 anos.

Quanto ao tempo de profissão, 12 profissionais (44,4%) trabalham ou trabalharam por 10 anos ou menos como professores/as, e 8 deles/as (29,6%) trabalharam por mais de 20 anos. Dentre os/as profissionais, 92,59% estão em atividade, ensinando matemática e, atualmente, 33,33% atuam nos anos finais do ensino fundamental, 25,93% no ensino médio e 29,63% nessas duas frentes.

Quando solicitamos que os/as participantes falassem um pouco sobre as suas memórias como alunos/as na educação básica e nos indicasse quais lembranças ainda guardam do tempo de estudante, observamos que a maioria relata o quanto gostava das aulas e de estudar. Alguns apreciavam as ciências exatas, a matemática, a física e, por se identificarem tanto, tornaram-se monitores/as dos demais. Porém, em quase todos os relatos é comum percebermos o quanto uma ação do/a professor/a de matemática influenciava em seus sentimentos: um elogio, a postura nobre e firme, um/a professor extrovertido/a, um/a amigo/a, professores/a rígidos/a que amedrontavam e causavam pânico. Também foi possível notar a importância do apoio da família nos estudos e aprendizado dos/as filhos/as e como isso os/as incentivou. Alguns relatam que nessa época já havia o desejo de se tornar professores.

 

[...] Ir para a escola sempre foi algo prazeroso, pois lá estava acompanhado pelos meus colegas e também pelo fato de que gostava de estudar e de aprender algo novo. A escola sempre foi um ambiente prazeroso, em que sempre me via no futuro fazendo parte dessa realidade, porém só no ensino médio tive a confirmação que gostaria de fazer matemática, pois nessa etapa fui apresentado a duas professoras que desenvolvia a disciplina com muita eficiência, o que me fez tomar a decisão de cursar essa graduação [...]. (ANTÚRIO, 2021).

Sempre gostei muito da disciplina de Matemática, pois, via constantemente a minha mãe fazendo cálculos após retornar do mercado, conferindo os valores das notas. Meu pai também, mesmo não tendo estudos, aplicava a Matemática no desenvolvimento das suas plantas das obras que construía. Daí surgiu minha paixão pela Matemática e demais disciplinas da área de exatas (CRAVINA, 2021).

Lembranças de me encantar quando descobria o porquê de uma fórmula matemática, de me encantar quando descobria por que vemos as coisas quando há luz e por que não vemos quando não há (GERÂNIO, 2021).

Como visto na pergunta anterior, muitos já afirmaram que descobriram sua vontade em se tornar professores/as durante suas vivências enquanto estudantes da educação básica. Dos 27 participantes, 23 responderam que as memórias influenciaram nessa escolha, justificada pela facilidade de aprender os conteúdos da disciplina, a experiência em ser monitor/a e principalmente pelo apreço dos professores com os alunos.

 

[...] eu tinha facilidade de aprender matemática, e eu ajudava os colegas que tinham dificuldades, quando eu escolhi fazer matemática, eu escolhi o que eu tinha facilidade de aprender com o que eu gostava de fazer, que era ensinar (GERBERA, 2021).

Com certeza. Eu já tinha facilidade em exatas, e os professores que tive foram decisivos para a minha escolha (FLOR DE MAIO, 2021).

[...] sempre gostei de cálculos e tinha admiração pelos meus professores de matemática (VITÓRIA RÉGIA, 2021).

[...] sim, desde muito cedo sabia que queria estar dentro das escolas, quando adulto, porém, as boas experiências com minhas professoras de matemática fizeram com que me matriculasse na graduação em matemática (ANTÚRIO, 2021).

Apenas 4 professores/as disseram que suas memórias do tempo de escola não influenciaram na escolha da profissão e apontam que a escolha da profissão se deu por questões financeiras, por ser uma matéria muito temida, ou por ter tido influências familiares mais significativas para essa escolha.

Quando perguntamos em que medida as memórias do seu tempo de estudante influenciaram a atuação como professor/a de Matemática, a maioria afirma que foram, de alguma forma, influenciados na maneira de ser professor. Alguns timidamente declaram o apreço pela matemática, e outros efusivamente destacam a atuação de seus antigos mestres no agir dentro da sala de aula.

 

Lembro da dificuldade que tínhamos… poucas aplicações e questões contextualizadas…, mas vale ressaltar que durante minha graduação, fui professor particular. Minhas memórias deste período influenciam muito minha atuação. Lá consegui ver onde moram os maiores problemas da matemática em nível médio (DENTE DE LEÃO, 2021).

Como sempre fui tratada com carinho e eles se preocupavam com o meu aprendizado, busco agir de forma semelhante e até além. Penso que essas memórias são importantes e não gostaria de constar negativamente nas memórias de meus alunos (AMARILIS, 2021).

Além do incentivo e motivação que eu sempre tive dentro de casa, através do acompanhamento dos meus pais, eu sempre tive bons professores de Matemática, que foram referência para mim (CRAVINA, 2021).

Ao serem questionados sobre as principais memórias que guardam da docência em matemática, associaram essas memórias a sentimentos como amor, atenção, aprendizagem, crescimento, carinho. Ressalta-se que apenas um/a professor/a relata dificuldade em sua memória devido à dificuldade com a disciplina de seus alunos. Vimos ainda relatos de ajuda a estudantes, sobre a felicidade dos olhos brilhantes de seus aprendizes ao compreenderem a matéria ensinada e demonstram felicidade com as vitórias alcançadas por seus alunos.

Perguntamos aos professores/as a sua opinião sobre a afirmação de Nóvoa: “É que ser professor abriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser” (1999, p. 3). A maioria dos respondentes afirma que concorda com o autor, inclusive indicando quanto a docência os havia transformado como pessoas. Uns relatam que é um processo de construção contínua e que cada aluno é responsável por isso. Outros relatam a conexão que criam entre mestre e aprendiz na qual se busca compreendê-los com finalidade de produção de conhecimento. Copo de leite (2021) afirma que “estamos em um constante processo de mudanças, aquilo que somos afeta o que ensinamos e, na medida que ensinamos, somos transformados por nossa prática”. Na mesma linha de raciocínio, outro respondente salienta: “cada professor tem suas características próprias decorrentes de suas vivências enquanto aluno e enquanto professor. Logo, cada um, a seu modo constrói sua identidade profissional que entrelaça com suas crenças e memórias de seu período de estudante (CRISÂNTEMO 2021).

Por fim, mas não menos importante, perguntamos aos/às professores/as que conselhos dariam a futuros professores de Matemática a partir de suas próprias experiências. Destas respostas, destacamos:

 

Não venha esperando que vá mudar o mundo de uma vez, é um passo de cada vez (GIRASSOL, 2021).

Esteja sempre disposto a aprender com sua prática. Se precisar mudar, mude. Uma metodologia pode ser sempre modificada, adaptada. Aceite que você também pode errar, e com isso transformar o erro em aprendizado (ROSA, 2021).

Nunca pare de estudar, de investigar a beleza da matemática e seus processos de ensino. Ensine tudo que puderem a seus alunos, cobrem o necessário. Pensem sempre na formação profissional e no desenvolvimento profissional como uma ação que acontece de dentro para fora, nunca percam a motivação para ensinar (CRISÂNTEMO, 2021).

Procure transformar as aulas em situações significativas para os alunos (ROSA DO DESERTO, 2021).

A profissão de professor é complexa. Vivemos experiências maravilhosas quando conseguimos algum indício de aprendizagem dos alunos e carregamos conosco as angústias dos estudantes que não se mostram interessados em aprender e que apresentam indisciplina comportamental. Por isso, eu digo: conquiste seu aluno pelo conhecimento de conteúdo matemático que você possui! Mostre a ele que aprender matemática é importante. Que faz sentido. Evite usar a matemática como seletiva. Nunca desista do processo de ensino e de aprendizagem de matemática. E, procure não levar para casa os desafios da escola (é difícil não levar, mas temos que tentar (AZALEIA, 2021).

Acredito que, para ser um bom professor, você deve estar ciente de todo contexto histórico e social de onde atua, e entender que a nossa profissão é muito mais do que apenas ''números'', temos que lidar com diversos desafios. Cada dia é um dia diferente na escola, aprendemos coisas novas diariamente, e nossa prática não pode ser imutável, podemos sempre aprender, mas para isso, é preciso ter sensibilidade e muita vontade! (LÍRIO, 2021).

A partir das respostas coletadas, é possível concluir o quão importante é a profissão docente e quão impactante podem ser os ensinamentos na vida dos educandos. A maioria dos participantes expressa como é relevante a atuação profissional daqueles que foram seus professores/as ainda na educação básica e como a relação construída no passado influenciou na escolha de suas profissões e como até hoje reflete na atuação de quem se tornou professor.

A escuta às vozes desses professores nos remete ao que afirma Jennifer Nias (1991, apud NÓVOA, 1995, p.15)iii “[...] o professor é a pessoa: e uma parte importante da pessoa é o professor [...]”. Nóvoa (1995, p. 15) chama a atenção para a centralidade do processo identitário da profissão docente, lembrando que, “[...] mesmo nos tempos áureos da racionalização e da uniformalização, cada um continuou a produzir no mais íntimo da sua maneira de ser professor [...] é impossível [portanto] separar o eu profissional do eu pessoal” (p.17)


Referências

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 6. ed., São Paulo: Atlas, 2017.

NÓVOA, António (Org.). Profissão professor. Porto: Porto Editora, 1999. p. 15-35.

NÓVOA, António. Os professores e a sua história de vida. In NÓVOA, António (Org.). Vida de professores. Porto: Porto Editora, 1995, p. 11-30.

PEREIRA, Adriana Soares, et al. Metodologia da pesquisa científica. 1ª. ed., Santa Maria, RS: UFSM, NTE,2018.


Notas

i O subtítulo do texto trata-se de uma afirmação de Nóvoa (1999, p. 3).

ii O levantamento foi realizado como atividade colaborativa na disciplina Seminário Integrador de junho a julho de 2021. A disciplina é componente curricular do Curso de Licenciatura em Matemática do Instituto Federal de Educação do Espírito Santo/Campus Cachoeiro de Itapemirim, e foi ministrada em 2021/1 pela professora Elda Alvarenga. A coleta de informações foi realizada, majoritariamente, por licenciandos/as regularmente matriculados/a na disciplina.

iii NIAS, Jennifer (1991). “Changing Times, Changing Identities: Greiving for a Kist Self”. Educational Reserarch and Evolution [R. Burgess, ed.]. London: The Falmer Press, 1991.

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