A HERANÇA CULTURAL PRESENTE NA TRADIÇÃO DA MOQUECA CAPIXABA E NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA/ES
Edina Antonia Morozesk1
Jean Michel Faria2
“É que ser professor abriga a opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam na nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser” (NÓVOA, 1999, p. 3).
RESUMO
O presente artigo tece algumas reflexões a partir do estudo da herança cultural na tradição culinária do Espírito Santo, a partir do prato típico “moqueca capixaba”. Analisa os processos que envolvem o preparo do prato e sua relação com a identidade e a memória do território capixaba na construção de sua identidade local. Com ingredientes diferenciados ou com a fabricação da própria panela, a culinária capixaba produz história que se remete desde seus povos originários, passando pelo período de colonização, até os dias atuais. Nesse contexto ressalta-se que a Lei Estadual nº. 7.567/2003 instituiu a moqueca capixaba, como a “comida típica do Estado do Espírito Santo” e a Lei municipal 8.213/2012, que institui o dia da moqueca no município de Vitoria/ES. A tradição do prato capixaba se converte em uma ferramenta de pesquisa onde cores e sabores se apresentam sem dúvida a uma realidade física de cheiros, memórias e principalmente histórias e referências históricas. O consumo da moqueca capixaba se torna culturalmente definido, como um ato cultural, em uma relação indissociável entre sociedades, afetos, costumes, cultura e identidade.
Palavras-chave
Identidade, Memória, Tradição.
DESENVOLVIMENTO
As tradições encontradas em um povo é um convite para se pensar a construção de sua história e por conseguinte, sua identidade. Neste processo, hábitos e costumes de um território apontam e nos revelam muito sobre sua origem e trajetória. A alimentação, em particular, torna-se também a expressão da cultura de um povo, não só quando produzido, mas quando preparado e consumido. Segundo Montanari (2008), as pessoas não utilizam apenas o que é oferecido pela natureza, mas criam e recriam alimentos, que são preparados seguindo técnicas e não comem qualquer coisa, escolhendo o que lhes convém conforme critérios também culturais. Nesse sentido, a alimentação envolve fatores históricos e culturais, como rituais, emoções, memórias, entre outros, tornando-se pertinente refletir sobre o significado das tradicionalidades de uma certa cultura e como esta cultura revela-se a partir de seus hábitos. Assim,
A relação entre o indivíduo e a comida é então uma expressão de uma ‘governabilidade’ de uma prática que procura uma própria liberdade de expressão na contínua mediação entre corporalidade e corpo social (MERLO, p. 11, 2011)
Nesse âmbito, o prato típico “moqueca capixaba” oferece um convite para importantes reflexões sobre a construção da identidade histórica das terras capixabas. É a partir dos seus ingredientes que podemos encontrar elementos que marcam a origem, influências e colonizações na construção da identidade dos indivíduos e do território a que pertencem.
A moqueca produzida nacionalmente, uma vez que também a encontramos como pato típico de outras regionalidades, sofre as mais diversas variações, porém na tradicional moqueca encontrada no território capixaba encontramos algumas especificidades em seus ingredientes, que indicam a relação direta à tradição e origem dos capixabas, uma vez que a receita local não apresenta alguns ingredientes usados na preparação do prato em outras regiões brasileiras. Diante deste, o prato capixaba se torna mais leve quando pensamos nas calorias em seu preparo, sendo incrementada pelo uso do azeite doce, da tintura de urucum, limão, o tomate, a cebola e alho, e ainda o aroma do tempero verde “coentro” em doses bem generosas. A moqueca capixaba além de sua tradição oferece também um prato menos calórico.
Sobre esta iguaria, Merlo afirma que:
Um olhar mais atento sobre a iguaria percebe as distinções: na moqueca capixaba não entra dendê – clara influência africana na culinária baiana – ou leite de coco; nem pimentão como costumam usar os cariocas. A receita local ganhou fama nestes tempos de culto ao corpo, exatamente por ser mais leve do ponto de vista calórico. (MERLO, p.30. 2011)
Complemento essencial que não pode faltar a este prato é o famoso “pirão”. Ele tem seu preparo a partir do caldo do peixe com, a adição da farinha de mandioca, ingrediente que completa e agrega na “moqueca capixaba” um sabor único, um convite às tradicionalidades da região. A Moqueca Capixaba, por ser um prato apreciado em todo o Espírito Santo e, com isso, muito famoso tanto para os moradores do estado como também de grande fama para aqueles que aproveitam a visita e passagem por esta região, apresenta algumas curiosidades em sua preparação, como é o caso da fabricação de sua própria panela.
A PANELA
A panela de barro com a fabricação no próprio município para que seja feito o preparo da moqueca capixaba, se torna mais um item relevante no processo de reconhecimento cultural deste território. Localizado no bairro de Goiabeiras, em Vitória/ES, a panela de barro é produzida manualmente pelas “paneleiras de Goiabeiras”, com o barro extraído na região do Vale do Mulembá, situado no bairro Joana D’Arc, na ilha de Vitória, que dá origem à panela de barro originalmente capixaba. Segundo o blog de nome “Tem Que Ir”, escrito por Mariza e Karina Cordovi, a panela de barro é um dos principais símbolos da cultura capixaba, sua fabricação artesanal ultrapassa gerações e é considerado um bem cultural do ES, registrado inclusive pelo Iphan como Patrimônio Imaterial, sendo item essencial no preparo da moqueca capixaba.
Arte na Rua de Acesso às paneleiras de Goiabeira.
Produção de panelas de barro.
E é na panela de barro, item indispensável para a produção da moqueca, que se amplia e transforma a memória em história, um processo que cria uma identidade e que carrega consigo representações e reconhecimentos, uma vez que une o preparo do prato à identidade, memória e tradição de pessoas desta região.
A CULTURA HISTÓRICA
A cultura histórica constituída e instrumentada por utensílios e bens materiais ou por normas que regem os diversos grupos sociais, são advindos dos signos criados pelo homem. Ao considerarmos a cultura, seja ela simples ou complexa, estaremos sempre na presença de aparatos que materializem sígnicos, tal como salientou Bakhtin (2003). Diante destes signos culturais, o preparo, a utilização e consumo do prato moqueca capixaba revela-se um pouco da cultura histórica local. Inicialmente em sua preparação, encontramos as marcas dos povos nativos da região Espírito-santense, como a utilização do urucum (tinta de cor vermelha), especiaria largamente utilizada pelos povos indígenas para fins de proteção da pele, que está acrescentada na preparação da moqueca, dando a cor característica a este prato, e ainda a raiz de mandioca, sendo transformada em farinha para o preparo do “pirão” elementos marcantes que evidencia a cultura dos povos indígenas que estão presentes na preparação da moqueca capixaba, destacando, assim, sua influência na construção histórica deste prato. Nesta mesma direção, e a partir da presença da colonização portuguesa nas terras capixabas, foi sendo incorporado à preparação do prato, os novos ingredientes trazidos pelos colonizadores, acrescentando as misturas dos temperos, como o alho, a cebola e o cheiro verde “coentro”, agregando assim novos sabores e aromas ao prato. Diante desta integração de culturas temos um prato genuinamente capixaba que revela em sua composição parte importante de sua história.
Neste sentido, é na criação da Lei Estadual nº. 7.567/2003, que instituiu a moqueca capixaba, como a “comida típica do Estado do Espírito Santo”, conferindo a este prato típico em seus ingredientes únicos, e em sua forma de preparação a distinção de símbolo do Estado do Espírito Santo, de sua gente e de sua cultura, marcando assim, a história de um povo.
Nesta mesma direção foi instituído em 2012, a homenagem criada através da Lei municipal 8.213/2012, que institui o “Dia da Moqueca” no município de Vitória, no dia 30 de setembro. Com isso, a data comemorativa passa a integrar o calendário oficial da cidade, comemorado anualmente com a oferta da comida típica em diversos restaurantes da cidade regada a muitos festejos na região, fortalecendo assim a divulgação do prato mais tradicional da gastronomia do Espírito Santo. A moqueca segue ganhando visibilidade e reconhecimento, fortalecendo a gastronomia e a história da região capixaba ao ter um dia especialmente para ser degustada e homenageada.
Sendo assim, a pesquisa e o reconhecimento de uma tradição que relaciona o indivíduo, o território e seus costumes, são continuamente revisitadas e reconstruídas, agregando instrumentos na legitimação da história de um povo. Segundo a Anpuh Brasil, o estudo da alimentação tem lugar privilegiado na análise cultural, na medida em que as preferências alimentares figuram entre os traços distintivos e singularizantes de qualquer cultura. Neste encontro entre o passado e o presente, o ato do consumo do prato "moqueca capixaba”, torna-se um ato cultural que tem sua marca na construção da identidade capixaba, apresentando em sua receita: sabores, cores, perfumes, resistências, identidades, histórias…
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Blog Tem que ir. Disponível em:https://www.temqueir.com.br/2014/10/paneleiras-de-goiabeiras.html. Acesso em: 17 de maio de 2022.
Moqueca Capixaba. Disponível em:https://youtu.be/FMcE8W-cJRw. Acesso em: 17 de maio de 2022.
História da Alimentação no Brasil: fontes, abordagens e perspectivas do campo. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=xvtzv-FKsEk. Acesso em: 17 de maio de 2022.
MERLO, Patrícia. Repensando a tradição: a moqueca capixaba e a construção da identidade local". Interseções. v. 13, n. 1, p. 26-39. Rio de Janeiro, jun. 2011.
MONTANARI, Massimo. Comida como Cultura. São Paulo: Senac, 2008.
Moqueca Capixaba - sabor & tradição. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=lAz_sfAGdaE. Acesso em: 17 de maio de 2022.
Programa Trilha Capixaba - Tv UVV N°1. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=CJfVnSUy3uQ. Acesso em: 17 de maio de 2022.
Lei Estadual nº. 7.567/2003, instituiu a moqueca como a “comida típica do Estado do Espírito Santo” Disponível em:http://www3.al.es.gov.br/legislacao/norma.aspx?id=19650. Acesso em: 18 de maio de 2022.
Dia da Moqueca capixaba é celebrado nesta quarta. Reportagem. Disponível em:https://www.es.gov.br/Not%C3%ADcia/dia-da-moqueca-capixaba-e-celebrado-nesta-quarta-30. Acesso em: 18 de maio de 2022.
Notas
1 Edina Antonia Morozesk é graduada em Pedagogia na Universidade Federal Espírito Santo/ Brasil. E-mail: edinamorozesk@gmail.com.
2 Jean Michel Faria é graduado em Pedagogia na Universidade Federal Espírito Santo/ Brasil. E-mail: jeanprofessorpedagogo@gmail.com.