Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A mulher independente segundo Simone de Beauvoir

Elda Alvarenga

Certamente muita coisa mudou na condição das mulheres, tanto no âmbito privado como público, desde O segundo sexo de Simone de Beauvoir. A autora nasceu 1918, mas foi na década de 50 com a publicação de O segundo sexo e depois do seu envolvimento com a luta pela emancipação das mulheres que se tornou uma referência nos debates feministas.

Segundo Paraíso (2005), professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, o livro suscitou uma infinidade de debates, de discussões, de artigos, comentários, críticas ardorosas e duras, ironias, distorções (da direita católica, da esquerda política, de diferentes intelectuais) da época. Aponta ainda que tanto a esquerda como a direita falavam que era deplorável a invasão da literatura pelo erotismo.

Gostaria de me dedicar nesse texto a uma pequena parte da citada obra, a quarta parte do volume II, no seu capítulo único, a autora discorre sobre a mulher independente. Não é por acaso que Beauvoir tenha escolhido a mulher independente para encerrar a lista de mulheres que analisa nas primeira, segunda e terceira parte. Ela faz um passeio pela vida das mulheres/meninas, das moças, das lésbicas, das casadas, das mães, prostitutas, narcisistas, amorosas e místicas, mas é na mulher independente, ou melhor, nas mulheres independentes que a autora deposita a sua esperança da libertação da mulher.

Em que pese as muitas contribuições que os mais recentes estudos de gênero trazem ao trabalho de Beauvoir, ele ainda tem muito a ensinar e, quem sabe, despertar nas mulheres e homens que como Simone acreditam na possibilidade da construção de outras relações sociais entre homens e mulheres. A vida das mulheres, os seus cotidianos, sua luta diária parece um misto das mulheres retratadas por Simone, em certa medida somos, na vivência real, ou na percepção da sociedade, um pouco de cada uma dessas mulheres, mas certamente ainda que nos identifiquemos de modo mais restrito a uma ou outra forma de viver a nossa feminilidade. Dessa forma, tratarei nesse pequeno texto de apresentar o perfil traçado por Beauvoir daquela que mais me identifico, a mulher independente.

Para Beauvoir (1980), foi pelo trabalho que a mulher conseguiu, em grande parte, diminuir a distância que a separava do homem. Para ela só o trabalho pode assegurar-lhe uma liberdade concreta (p. 449). A autora aponta que a maldição da mulher vassala está no fato de que não lhe é permitido fazer o que quer que seja, por isso ela se obstina a procura do ser através do narcisismo, do amor, da religião. É nesse sentido que aparece a dura realidade da mulher independente uma vez que mesmo assumindo essa condição perante a sociedade não recebem desta, nem nos espaços públicos nem no privado, condições para terem uma vida de liberdade no mesmo patamar dos homens uma vez que não evadem [totalmente] do mundo feminino. Simone acreditava que liberdade econômica da mulher em relação ao homem não é garantia que esta vai alcançar uma situação moral, social e psicológica idêntica ao do homem.

Para Beauvoir a mulher independente vive um conflito constante. Para realizar a sua feminilidade ela precisa renunciar a sua reivindicação de sujeito soberano uma vez que no imaginário da sociedade patriarcal, existem papeis definidos para homens e mulheres. Nesse sentido pode ser “aceito” que as mulheres trabalhem fora de casa desde que após uma longa e dura jornada diária de trabalho, ao chegar em casa, dê conta das suas tarefas natas, a manutenção e organização do lar, o cuidado dos/as filhas, a servidão ao marido. É a mulher que no fim do dia, prepara o jantar, dá banho nas crianças e ao deitar-se ainda tem que estar disposta a cumprir o seu papel de esposa junto ao marido.

Outro agravante nessa relação é a aparência física. Diferente dos homens as mulheres são o tempo todo, medidas, avaliadas, controladas pela aparência, para Simone,

 

Quando a olham não a distinguem de sua aparência: ela é julgada, respeitada, desejada através de sua toalete. Suas vestimentas foram primitivamente destinadas a confiná-las na impotência e permaneceram frágeis: as meias rasgam-se, os saltos acalcanham-se, as blusas e os vestidos claros sujam-se, as pregas desfazem-se; entretanto, ela mesma deverá reparar a maior parte desses acidentes.

A maternidade, para Beauvoir, é uma função feminina quase impossível para a mulher assumir com toda liberdade. Para ela se esse encargo é pesado, é porque, inversamente, os costumes não autorizam a mulher a procriar quando lhe apetece (...) é raro que se possa tornar-se mãe sem aceitar os grilhões do casamento ou sem decair. Nesse sentido a autora aponta a falta de políticas públicas como creches, parques infantis convenientemente organizados para possibilitar às mulheres, ainda que mães, uma vida independente. Sobre isso conclui:

 

Basta um filho para paralisar inteiramente a atividade da mulher. Ela só pode continuar a trabalhar abandonando as crianças aos pais, a amigos ou a criados. Tem que escolher entre a esterilidade, muitas vezes sentida como uma dolorosa frustração, e encargos dificilmente compatíveis com o exercício da carreira.

Por fim Simone caracteriza a mulher independente como uma pessoa dividida entre seus interesses profissionais e as preocupações de sua “vocação” sexual, tem dificuldades de encontrar seu equilíbrio, se o assegura é às custas de concessões, sacrifícios, de acrobacias que exigem dela uma constante tensão. Assim, muito mais do que nos dados fisiológicos, é que cabe procurar a razão do nervosismo, é que cabe buscar as causas do nervosismo, da fragilidade que muitas vezes se observam nela.

Para terminar, gostaria de me referir a algo não citado pela autora, mas que é muito comum nos dias atuais. São as mulheres, especialmente as que estão no mundo do trabalho, vítimas constantes do assédio sexual dos homens. As independentes, certamente estão mais expostas ao assédio uma vez que atravessam as barreiras no mundo masculino e convivem com homens que estão para além das relações familiares, supostamente protegidas desse tipo de violência. Muito homens, talvez a maioria deles, veem nas mulheres independentes, especialmente as feministas, a possibilidade de sexo fácil e as que lhe negam esse prazer são muitas vezes perseguidas nas suas relações profissionais. Dessa forma concordo com a autora que a natureza de seu erotismo, as dificuldades de uma vida sexual livre incitam a mulher a monogamia.

Se é verdade que do cenário em que O segundo sexo foi escrito aos dias hoje muitos avanços se conseguiu no que se refere a condição das mulheres na sociedade, também é certo que ainda falta muito para que as mulheres alcancem um estatuto de equidade social numa sociedade marcada pelo patriarcado. Apesar do tempo em que foi escrito, acredito que muitas das palavras da autora podem ser perfeitamente utilizadas para os dias atuais: é ainda muito mais difícil para a mulher do que para o homem estabelecer as relações que deseja com o outro sexo. Que não sejamos consideradas as pobres coitadas oprimidas historicamente, mas aquelas que vêm bravamente resistindo à construção social que submete a mulher ao jugo masculino e que, em que pese o peso desse jugo, esforçam-se para destruí-lo definitivamente não apenas no campo pessoal, mas social e coletivamente.

COMPARTILHE: