Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A CONTRAIDEOLOGIA DE GÊNERO: DESNATURALIZANDO A DENOMINADA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”1

Elda Alvarenga

Dias desses, caiu em nossas mãos, quase que por acaso, um exemplar da Revista Comunhão (nº 215, de junho de 2015). De pronto nos deparamos na capa com a manchete da entrevista com o Pastor Presidente da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia: “batalha contra a ideologia de gênero”. Apesar de dolorida, a leitura nos ajudou a entender, apesar de não aceitarmos, porque ainda é tão complicado o debate de temas como gênero e diversidade sexual no Brasil. O diálogo entre essas e algumas outras matérias jornalísticas produzidas no último período, levou-nos, de forma mais incisiva, a escrever esse texto. Um duplo objetivo nos motiva: o primeiro é compreender o cenário atual em que se encontra o debate em torno do papel da escola no que se refere às relações sociais de gênero e à diversidade sexual; o segundo é desmitificar as interpretações equivocadas e preconceituosas que têm sido veiculados na mídia em relação às temáticas de gênero e diversidade sexual.

No Brasil, essa discussão ganha volume quando, em 2014, vemos serem retomadas as forças sociais conservadoras, que passaram a se organizar mais fortemente contra o que passou a ser chamado de “ideologia de gênero”. Essas forças, expressas por alas conservadoras católicas e neopentencostais, por meio de seus líderes religiosos e líderes parlamentares representantes na Câmara e no Senado, afirmam estar ocorrendo “uma conspiração internacional que quer ‘perverter’ as crianças, ensiná-las a ser gays e destruir a família dita tradicional” (REIS, 2015, p. 1) e de que a ideologia de gênero, ao contrário de respeitar o “pressuposto antropológico de uma visão integral do ser humano, fundamentada nos valores humanos e éticos, identidade histórica do povo brasileiro [...] vai no caminho oposto e desconstrói o conceito de família, que tem seu fundamento na união estável entre homem e mulher” (CNBB, 2015, p. 1).

Sob essa alegação, pode-se assistir em nível nacional um ataque a denominada, por essa ala conservadora, de “ideologia de gênero” que afirmam se fazer presente no Plano Nacional de Educação e nos Planos Estaduais e Municipais de educação. Sob uma estratégia perversa, sorrateiramente, promoveu-se a troca do termo “igualdade de gênero” por “ideologia de gênero”, conseguindo adesões de setores mais conservadores da sociedade para a retirada dos termos gênero e sexualidade desses planos de educação. Nessa linha de atuação, esse setor conseguiu “minar” um importante instrumento orientador da política educacional do país. O que já se apresentava nos debates provocados pelo deputado Marco Feliciano (PSC-SP) da comissão de direitos humanos do senado e, na atualidade da câmara, parece ter ganhado força e avança sobre as conquistas históricas referentes às questões de gênero e diversidade. Uma das investidas desse pensamento conservador, afetou diretamente na veia da educação, quando na votação do Plano Nacional de Educação em 2014, o plenário aprovou a retirada do termo gênero de todas as metas ali postas.

Esse movimento de tensão em torno das questões de gênero parece se apresentar como um fenômeno internacional alavancado principalmente pelas alas conservadoras de neopentencostais e católicos. Na Itália, o foco foi o Family Day ocorrido na Praça de São João em Roma, quando pessoas portavam cartazes com slogans como: "Tirem as mãos dos nossos filhos", "nascemos homem e mulher", "parem o gênero nas escolas", "o gênero é o esterco do diabo". Tal situação provocou a filósofa italiana Michela Marzano, professora da Universidade de Paris V - René Descartes a escrever o artigo2 intitulado “A cruzada contra o gênero, o fantasma que agita os católicos” que foi publicado no jornal La Repubblica, em 22 de junho de 2015.

Seguindo a mesma orientação, no Espírito Santo também houve manifestações por parte da Igreja Católica, representada pelo arcebispo de Vitória, Dom Luiz Mancilha Vilela, por meio de uma entrevista a um jornal local. Vilela afirma dentre outras coisas que a inclusão da “ideologia de gênero” nos planos nacional e estaduais de educação “destrói a família”. Alega também que nessa lógica, professores e professoras são proibidos de tratarem as crianças como menino e menina. Essa carta certamente foi um divisor de águas para o debate que no momento estava em curso. Nota-se também que se fizeram presentes diversos líderes de igrejas protestantes. Com e por isso, as plenárias ocorridas na Assembléia Legislativa e nas Câmaras Municipais de Vereadores da Grande Vitória para a aprovação dos planos Estadual e Municipais de Educação, houve grande debate em torno da questão e em todas as sessões as votações apontaram para a retirada de qualquer alusão a política de igualdade de gênero dos planos de educação.

Na capital, mesmo com as inúmeras tentativas de diálogo da Secretaria de Educação com a Câmara Municipal, a versão final do Plano Municipal de Educação foi aprovada desprovida de toda e qualquer menção a gênero, diversidade e relações etnicorraciais. Após a derrota da proposta apresentada pelo Conselho Municipal de Educação, a Secretaria promoveu uma reunião com diversos líderes religiosos e com a bancada religiosa (conservadora e reacionária) da Câmara, para explicitar quais os parâmetros de debate sobre essas temáticas nas escolas municipais de Vitória. Assessores presentes nesta reunião afirmam que ficou explicado a diferença entre a proposta da Secretaria e o que a Câmara entende como ideologia de gênero. Mas o Plano não foi alterado, ou seja, tornou-se omisso quanto às relações sociais de gênero, da diversidade sexual e etincorraciais. No município de Serra, Grande Vitória, os vereadores Carlos Augusto Lorenzoni (PP) e Jorge Luiz da Silva (SDD) chegaram a propor uma Lei Municipal (PL 124/15) proibindo no âmbito do Município, em escolas públicas e particulares, “a promoção da diversidade de gênero, disseminar materiais pedagógicos que promovam igualdade de gênero, orientação sexual e identidade de gênero” (SERRA, 2015, p. 1).

Para não sermos redundantes basta dizer, que o mesmo ocorreu em Cariacica e Viana e muito provavelmente na maioria dos municípios capixabas.3 Dessa forma, pode-se afirmar que, lamentavelmente, a difusão equivocada dos pressupostos de gênero e da diversidade sexual foram fundamentais para essa violação explicita da autonomia dos sistemas municipais de educação e uma afronta ao papel social dos professores e das professoras. Nesse sentido, questiona-se: podemos nós professores e professoras, legislar sobre a atividade laboral dos deputados e vereadores? Temos nós algum diálogo com os princípios religiosos orquestrados nas igrejas? Por que então, podem essas pessoas, que se autodenominam defensores da família, interferir de forma tão aviltante nos processos educativos sob a espada da religião, numa sociedade que garante em sua Carta Maior a laicidade?

Antes mesmo de nos recuperarmos do “golpe” contra o plano estadual e municipais de educação, fomos surpreendidos com a aprovação do Projeto de Lei 6853/2013 na Comissão Especial do Estatuto da Família. De autoria do deputado Anderson Ferreira (PR-PE), “institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar”. Ao limitar os arranjos familiares aos que são compostos pela união entre homens e mulheres, o Estatuto exclui cerca de 25% de arranjos familiares que fogem ao modelo nuclear de família (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Para justificar a relevância do projeto, afirma Ferreira:

O que existe hoje é uma tentativa de imposição de uma ideologia de gênero, passando a ideia de que a família tradicional não dá certo, enquanto os outros arranjos familiares são a melhor alternativa. E não é verdade. A família tradicional é a base da sociedade e assim continuará sendo. (O Tempo, 4/10/15)4

Mais uma vez apropria-se de forma distorcida do gênero e da diversidade para justificar posições reacionárias e excludentes. Ora, os que temos defendido não é o fim da família nuclear, heteronormativa, mas ampliar o conceito de família e possibilitar que os seres humanos construam os seus afetos sem as amarras do Estado. Observa-se nas matérias veiculadas em torno desse debate que esse setor da sociedade entende a ideologia de gênero como a que determina a ausência do sexo desde o nascimento até sua decisão sobre por qual deles “optar”: masculino ou feminino. Equivocam-se ao dizer que queremos definir (ideologicamente) os comportamentos sexuais, pois, ao contrário de entender a sexualidade apenas pelo viés biológico, o que os pressupostos de gênero e da diversidade sexual questionam é o direito ao exercício de liberdade dos afetos, da sexualidade e do próprio corpo, ou seja, um direito humano.

Diferente do que vem sendo postulado pelos religiosos de plantão, o gênero não afirma que os seres humanos são naturalmente iguais, mas que não devem ser socialmente desiguais. É justamente o inverso. O conceito de gênero se apresenta para denunciar que somos diferentes, não apenas do ponto de vista biológico, mas fundamentalmente pelas construções sócio-culturais a que estamos envolvidos em nossas interações. Somos diferentes sim, mas diferença não deve ser contraposto a desigualdade e sim a homogeneização. Igualdade deve ser oposta a desigualdade. Nesse sentido, apesar de diferentes, não podemos transformar essas diferenças em desigualdades e impedir as pessoas de acessarem direitos sociais a que todo ser humano tem, independente de sua condição social ou orientação sexual. As conquistas obtidas nos últimos anos foram conquistas justamente de pessoas que lutaram contra essa ideologia que pretendia “encaixar” essas diferenças, impedindo que as pessoas que não se enquadravam pudessem viver suas vidas como um direito social. É preciso afirmar: o conceito de gênero é contraideológico.

Incomodou-nos, de modo especial nas matérias veiculadas a confusão que segmentos religiosos fazem com conceitos (gênero, diversidade sexual, etc.), construídos no último século e que tanto nos ajudam a compreender a vida humana para além de sua definição biológica. Nos últimos anos, vez por outra, somos atropeladxs por movimentos reacionários que insistem na manutenção de uma estrutura hierárquica de sociedade, pautada na moral sexista, heteronormativa e excludente.

Como nem tudo está perdido, vimos pipocar em todo o país inúmeras manifestações de repúdio a esse movimento reacionário. Dentre eles podemos citar, em se tratando de dispositivos legais, a Resolução Nº 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gayz, Travestis e Transexuais – CNCD/LGBT e a Portaria Nº 916 do Ministério da Educação. Também vimos movimentos de professores/as reafirmando a responsabilidade social e científica dos processos educativos na luta contra toda a forma de discriminação. Seguimos conclamamos professores e professoras a continuarem realizando as discussões de gênero em acordo com os cursos e políticas de gênero que viemos realizando nos últimos anos e assim avançar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.


Notas

1- A partir das informações iniciais apresentadas, de forma sintética, neste texto, foram produzidos outros artigos, com maior aprofundamento teórico. A maioria em fase de publicação. Uma versão já publicada pode ser localizada em: SILVA, E.M.; ALVARENGA, E.; AMORIM, F.L.A.; FERREIRA, E.B. A “Ideologia de Gênero” e a “escola sem partido”: faces de uma mesma moeda em ações políticas conservadoras no Brasil e no Espírito Santo. Inter-Ação, Goiânia, v.43,n.3, p. 615-631, set./dez. 2018. Disponível em:http://dx.doi.org/10.5216/ia.v43i3.48847.

2- O artigo foi traduzido por Moisés Sbardelotto e está disponível em:http://midiareligiaopolitica.blogspot.com.br/2015/06/grupos-religiosos-conservadores-reagem.html. Acesso em 10 jul. 2015.

3- Estamos ainda em processo de levantamento desses dados.

4- Disponível em:http://www.otempo.com.br/novo-estatuto-exclui-25-das-fam%C3%ADlias-brasileiras-1.1128840. Acesso em 04/10/15.


Referências

CNCD/LGBT. Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gayz, Travestis e Transexuais. Resolução Nº 12, de 15 de janeiro de 2015, estabelece parâmetros para a garantia de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais [...].Brasília, 2015.

CNBB. Nota da CNBB sobre a inclusão da ideologia de gênero nos Planos de Educação. Disponível em:http://www.cnbb.org.br/imprensa-1/noticias/16732-cnbb-divulga-nota-sobre-a-inclusao-da-ideologia-de-genero-nos-planos-de-educacao. Acesso em 10 jul. 2015.

O TEMPO.

MEC. Ministério da Educação. Portaria Nº 916, de 09 de setembro de 2015, institui Comitê de Gênero, de caráter consultivo, no âmbito do Ministério da Educação. Brasília, 2015.

REIS, Toni. A “ideologia de gênero”, a equidade e os planos de educação. Disponível em:http://www.anped.org.br/news/a-ideologia-de-genero-a-equidade-e-os-planos-de-educacao Acesso em 10 jul. 2015.

MALAFAIA, Silas. Eu sou um pastor que luto para praticar a palavra de Deus [...]. Comunhão. Espírito Santo. p. 12-16, Julh. 2015. Entrevista concedida a Sânnie Rocha.

SERRA. Câmara Municipal de Vereadores. Projeto de Lei PL 124/15. Proíbe no âmbito do Município da Serra-ES a promoção da diversidade de gênero nas escolas públicas e particulares. Serra, 2015.

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