Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A vida anormal na pandemia: é possível aprender com essa experiência?

Elda Alvarenga

Este texto não é uma produção acadêmica. É, antes de tudo, o registro da memória desse tempo nebuloso em que estamos vivendo. Me interessa aqui refletir sobre essa experiência, inédita para todos/as, a partir da minha vivência pessoal e, obviamente, particular.

Fui “apresentada” à pandemia no final de fevereiro com as notícias vinda da Europa pela mídia local. Naquele momento nem imaginava o que estava por vir. Já no início do mês de março de 2020 iniciamos os primeiros cuidados mas foi a partir do dia 17 que, efetivamente, “a ficha começou a caiu”. Naquele dia, recebemos um comunicado da direção geral do Ifes, informando que as aulas seriam suspensas a partir do dia seguinte. Lembro de ter entrado na sala de aula sem saber ao certo o que e como falar com os/as estudantes. Fomos todos pegos de surpresa. Não imaginava naquele momento que ficaríamos tanto tempo afastados/as.

No dia seguinte iniciamos a corrida atrás do álcool gel. Procurei em várias farmácias, coloquei o nome em inúmeras listas de espera e nada. Encontrei em uma papelaria um pequeno frasco de 150 ml por 16 reais. Me recusei a ser “assaltada”, mas confesso que a medida que o tempo passava, mais ficava apreensiva por não ter esse produto de primeira necessidade, em tempos de corona vírus em casa. No processo soube que algumas pessoas estavam estocando álcool e, por isso, as que “se atrasaram” não tiveram acesso a ele no primeiro momento. Duas pessoas da minha família dividiram comigo o que conseguiram comprar. Nossa primeira lição: a pandemia não amplia e nem reduz a solidariedade das pessoas, quem é solidário é e quem não é não é. A pandemia não muda o caráter e nem os princípios fundamentais das pessoas.

Nesta mesma semana, nosso “conselho de família” decidiu que, para proteção de nossa mãe e pai, as visitas dos/as filhos/as seriam suspensas. Como eu era a única filha que a profissão possibilitava trabalhar em casa, assumi a responsabilidade de fazer as tarefas que eles precisavam fazer fora de casa: alimentação, remédios, pagamento de contas. Foi difícil convencê-los que a pequena quitanda do bairro, a farmácia em que eles compravam cotidianamente e o papo solto com os vizinhos poderiam ser uma via de transmissão do vírus. E assim foi, por um tempo.

Nos primeiros meses da pandemia nosso maior desafio era nos acostumar com a nova rotina ao mesmo tempo em que mudamos a forma de lidar com as outras pessoas. Atitudes corriqueiras como apertar as mãos e abraçar se tornaram ameaças a proliferação do vírus. Como foi difícil desaprender o que aprendemos desde muito cedo! Esse foi o momento de recebermos milhares de informações sobre a doença, a pandemia e em especial as formas de prevenção. Aprendemos as diferenças, para além das aparências, entre o álcool líquido e o gel e suas as variadas gradações.

No âmbito doméstico vivemos uma verdadeira revolução na forma de nos relacionarmos com a nossa casa. Sem a nossa ajudante semanal, vivemos na pele o dilema do trabalho invisível e interminável – o que reforçou em nós o valor dessas profissionais – mas o confinamento em casa nos possibilitou perceber cantos e recantos da casa que apesar de antigos nunca nos chamaram a atenção. Passamos a ver o que antes era imperceptível. Deixamos de passar as roupas, algo inimaginável até então. As visitas frequentes ao supermercado foram trocadas por compras pela internet. Pegar o elevador para entrar e sair, quando era extremamente necessário, tornou-se uma tarefa difícil. Suspendemos as atividades físicas no Parque Moscoso e na academia. Os aniversários de amigos/as e familiares foram “comemorados” de forma virtual e fomos ainda mais conectados aos celular e aos computadores à medida que precisávamos nos desconectar fisicamente das outras pessoas.

Profissionalmente, o que eu pensava que duraria alguns dias, foi se transformando em semanas e meses. Foram inúmeras reuniões, resoluções, planejamentos cancelados, alterados, indefinições, perdas e danos. Felizmente, em maio retornamos às atividades docentes de forma não presencial. O reencontro com os/as meus alunos/as me trouxe esperança, me reaproximou dos/as estudantes o que me ajudou, e muito, a viver esses dias. Os encontro semanais com eles e elas me davam um pequeno lampejo de um vida normal.

O retorno à docência exigiu uma nova adequação da nossa rotina familiar incluindo a logística e o planejamento do uso dos equipamentos e espaços físicos da casa. Em um núcleo familiar de duas pessoas, com dois computadores de mesa e dois notebooks, internet banda larga e um escritório, foi necessário muita paciência para com as quedas de internet, as falhas dos equipamentos e com as plataformas que, sobrecarregadas, às vezes nos deixavam na mão. Esse contexto também me levou a questionar como que milhares de famílias mais numerosas e com menos espaços disponíveis se organizaram diante desse contexto. Outro aprendizado: a pandemia chega de forma diferente nos distintos grupos sociais, sua perversidade é ampliada nas camadas mais pobres da população.

Quando a gente começou a se acostumar com a perversa rotina imposta pelo isolamento social, o mês de maio nos reservou um pouco mais de emoção no processo. Diagnosticado já nos primórdios da pandemia com uma infecção de vesícula, meu irmão caçula precisou ser internado para a realização de uma colecistectomia. Foi nosso primeiro contato com um hospital na pandemia. O medo potencializado em cada gesto, cada pessoa.

Passado o susto e, considerando o contexto, ficamos um pouco mais de 24 horas no hospital. Ao voltar para casa mais afastamentos devido ao contato com o hospital. Mas nosso respiro aliviado durou muito pouco.... Na segunda feira seguinte ele foi novamente hospitalizado. Foram 33 dias de internação, destes 17 da UTI e 14 no isolamento depois de ter contraído Covid no hospital. Dessa experiência outra lição: é possível acompanhar de perto alguém no hospital e não ser contaminado. Mas a tensão é grande. Nesse período precisei ficar fora de casa como forma de proteger meu companheiro, triplamente grupo de risco. Foram dias difíceis, o isolamento mais complicado. Mas o pior ainda estava por vir.

De volta a nossa rotina de pandemia, fomos nos acostumando com a anormalidade da pandemia. Mas a mais dolorosa experiência ainda estava por vir. Apesar de todos os esforços que fizemos para os proteger da nova corona vírus, nosso pai e mãe foram contaminados e, após tantos anos de luta e inúmeras vitórias, eles se despediram, vencidos pelas complicações da doença.

Ela se foi no dia 23 de agosto e ele minutos antes de fazer 24 horas, no dia 24. Foi muito complicado não poder nos despedir deles. A única coisa que pudemos fazer, foi um breve reconhecimento de menos de um minuto. Essa experiência nos trouxe duplo aprendizado: aprender a viver o luto e a vive-lo isoladamente, sem o afago presencial da família e dos/as amigos/as. Mas recebemos muito carinho: por watzap, telefonemas, mensagens, guloseimas, flores. Cada um e cada uma dos queridos amigos se manifestou de alguma forma e isso nos fortaleceu e nos deu força para continuar seguindo em frente. Nos reinventamos.

Ele e ela fazem parte desta triste estatística: 208.291 óbitos registrados no Brasil em 151 de janeiro de 2021. O ano mudou e os números não param de crescer. A irresponsabilidade do governo federal em frente a esse vírus devastador é visível e repugnante. O meu pai e minha mãe nem os demais óbitos registrados desde o início da pandemia, não são números. Não precisavam morrer nem agora e nem assim. Essas mortes deixam para nós, além da saudade e dos inúmeros afetos, um sabor amargo da omissão do Estado diante de uma doença tão implacável, que mata precocemente nossos sábios anciões.

É notório que em tempos de crise o ser humano procure formas de se reinventar, de sobreviver, talvez por isso, algumas pessoas passaram a caracterizar esse processo como o “novo normal”. Não é normal não podermos visitar nossos pais em vida e nem vela-los na morte. Não é normal o medo do abraço, do aperto de mão dos que fazem parte do nosso ciclo de afetos. Nada está normal! O velho já não era muito normal, muito menos esse “novo”. Ao fim, entre idas e vindas, perdas e danos, somos sobreviventes: “sementes teimosas” que insistem em resistir. O que nos resta, além de nos proteger e aos nossos/as é gritar em alto e em bom tom: quero é minha vida de volta!


Notas

1 Fonte: Portal G1. Disponível em:

https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/01/15/casos-e-mortes-por-coronavirus-no-brasil-em-15-de-janeiro-segundo-consorcio-de-veiculos-de-imprensa.ghtml. Acesso em 15 de janeiro de 2020.

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