Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O tamanho do desespero

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Não deve haver dúvidas de que o tal “mito” que diz presidir desde Brasília tem sido uma das principais ameaças a nossa sobrevivência como povo brasileiro. No entanto, ele está longe de ser um fundador da mitologia brasileira, cujo maior legado tem sido a ideia de um Brasil-potência que, agora, mesmo diante do aprofundamento da pandemia, mantém muita gente acreditando que estamos apenas num estágio de exceção e que precisamos lutar para retornarmos à tal normalidade democrática, suspensa com o golpe de 2016.

Certamente, esse é um legado do processo de descolonização subalterna, iniciada com a vinda da família real portuguesa. Mas ganhou mais expressão com Getúlio e Juscelino e, depois, com os militares que, ante à crise mundial explicitada nos anos 1970, difundiam a máxima de que seríamos uma “ilha de tranquilidade em mar revolto”, o “país do futuro”, entre outras bravatas gestadas nas casernas, enquanto mergulhavam o país numa armadilha especulativa sem retorno.

Com o fim da ditadura militar e depois dos fracassados planos de controle da inflação dos anos 1980 e início dos anos 1990 surgiram os novos salvadores da pátria. Mas, ao contrário do discurso de rompimento com a tradição, ante a rigidez das contradições do capital, deram prosseguimento no culto aos mitos e isso é o que importa, de fato, se quisermos compreender o que está acontecendo neste país, no início desta terceira década do século XXI.

Desde o Plano Real os governantes apostaram ainda mais alto na armadilha do endividamento público com o argumento de que esta seria a única forma de caminharmos rumo ao primeiro mundo. A dívida não seria problema, pois, até na maior economia capitalista do planeta, as dívidas do Estado, das empresas e das famílias ultrapassam todos os limites imaginados e os Estados Unidos continuam fazendo e acontecendo, no mundo todo. Bastaria seguirmos o mesmo caminho.

Com isso, passamos a conviver com os céticos da crise. Cada vez mais pessoas passaram a ver as farras de algumas famílias privilegiadas como um sinal nítido de que as crises capitalistas simplesmente não existiriam. Elas seriam apenas uma forma dos grandes empresários desviarem a atenção, enquanto cuidam de seu enriquecimento pessoal, em momentos de maior ganância e desumanidade, sem que isso abalasse o processo de acumulação em geral. Estaríamos na terceira revolução tecnológica, rumo a uma quarta onda de inovações que, enfim, resolveria todos os problemas da humanidade. Com isso, os governantes e a mídia proprietária venderam bem a ideia de que os solavancos de 2008 não resultariam em tsunami alguma e que poderíamos continuar surfando nas marolinhas.

Para isso, bastaria manter a austeridade fiscal. Privatizar empresas e serviços públicos e cortar gastos continua até hoje a ser a cantilena preferida dos/as analistas econômicos da imprensa proprietária, dizendo que o governo está gastando mais do que arrecada e, por isso, não consegue cumprir com as metas estabelecidas de superávit primário. E tome mais cortes e venda de patrimônio estatal.

Quais os resultados de décadas e décadas de sacrifícios em nome da austeridade? Por enquanto, vale a pena prestarmos atenção em apenas um dos aspectos macroeconômicos internos para entender o tamanho do desespero que assola os tomadores de decisão na atualidade. Em outro momento comentaremos os resultados dessa mágica mítica no âmbito das contas externas, com foco nas transferências de riquezas para o exterior, as quais completam a expressão desesperadora.

Com a política do endividamento sem limites, a dívida externa, que segundo a mitologia teria sido sanada, continua ativa e operante. No início do século, em 2001, o Brasil acumulou um estoque de dívida externa bruta em torno de US$ 228 bilhões, que nunca parou de crescer, apesar do discurso de sua solução mágica, o que levou seu patamar para mais U$ 620 bilhões, em meados de 2020. Mas, o pior, a contínua conversão de dívida externa em dívida interna, especialmente após o Plano Real, fez explodir o endividamento público, em reais, elevando o desespero para patamares jamais vistos.

O volume total de títulos públicos emitidos pelo governo federal, no final de 1993, acumulava o equivalente a R$ 4,99 bilhões. Com o ajuste realizado para implantação do Plano Real, em julho de 1994 o volume de títulos emitidos alcançou R$ 56 bilhões, ou seja, multiplicou-se por mais de 10 vezes, em apenas 1 semestre. De lá para cá, a coisa saiu do controle e esse tem sido um problemão, sem solução aparente, pois, o volume de títulos emitidos pelo Tesouro Nacional aproximou-se de R$ 6,5 trilhões como pode ser visto no quadro abaixo:

Volume da dívida interna bruta brasileira

A armadilha do endividamento público trouxe o país para um alto risco de insolvência neste início de ano. Esta, inclusive, não tem sido uma notícia muito badalada na mídia, mas, já existe uma tensão muito grande, no tal mercado, pois, os compromissos com a dívida externa que vencem a partir do próximo mês estão seriamente ameaçados de não serem cumpridos.

Outra face macroeconômica interna que mostra a dimensão desesperadora, um dos motivos do golpe de 2016, foi a perda de capacidade do governo federal em manter resultados primários positivos, após 2013. Até então, mesmo sem conseguir pagar a totalidade dos juros devidos, o governo conseguia rolar a dívida com um desempenho satisfatório no cumprimento das metas de superávit primário, ou seja, mantendo um saldo significativo entre a arrecadação e os gastos fiscais, cujo resultado permitia algum pagamento parcial de juros.

Resultado primário do governo central – Brasil – 2000-2020

Depois de 2013, no entanto, mesmo com todos os cortes de gastos e com a alienação de patrimônio, a própria política de renúncia fiscal (desoneração de impostos das empresas) justificada como incentivo à redução da queda da produção interna, acabou impedindo a geração de superávit fiscal, aguçando o desespero geral. Não bastasse as condições estruturais, evidentes desde muito tempo, em 2020, o aprofundamento da queda da atividade econômica e das receitas públicas, combinada à necessidade de elevação dos gastos, devido à pandemia Covid-19, o caldo entornou de vez. Os contínuos déficits nos resultados primários do governo central, observados desde 2014, simplesmente explodiram, alcançando o patamar de R$ 776 bilhões, demostrando de forma muito mais flagrante a falência definitiva do modelo miticamente montado como a solução de todos os nossos problemas.

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