Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Acumulação primitiva de capital e escravidão

Helder Gomes

A descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era da produção capitalista.
Karl Marx

Neste mês dedicado a Zumbi dos Palmares proponho aqui o resgate de um velho debate. Trata-se das motivações que levaram ao trabalho escravo de famílias negras, na era colonial, em plena emergência do capitalismo europeu, exatamente quando seus baluartes divulgavam aos quatro cantos as vantagens do trabalho assalariado, livre das amarras do antigo regime feudal. Ainda persistem várias explicações equivocadas sobre o escravismo no Brasil e acerca da transição ao trabalho assalariado, criando as bases, inclusive, para a afirmação de uma suposta democracia racial, que reinaria na sociedade brasileira após a Abolição.

Neste artigo me detenho à questão colonial escravista. Procuro resgatar dois autores que raramente são lembrados no tratamento do passado colonial brasileiro, e cujos estudos de Economia Política contribuem com uma linha de interpretação que considero mais realista sobre a opção colonial pela escravização de famílias africanas no Brasil e em outras partes também naquele período.

Escravidão em pleno século XVI

O período em análise é o da transição mercantilista para o capitalismo em nível mundial. A era das grandes navegações, das descobertas e primeiras explorações do Novo Mundo. Os filmes sobre os piratas e desbravadores, assim como os famosos westerns, ajudaram a consolidar uma imagem que há muito tempo freqüentam as formulações acadêmicas sobre esse nosso passado nem tão longínquo assim.

É o caso do tema deste artigo. A idéia do índio preguiçoso, de pouca resistência física para o árduo trabalho nas fazendas de engenho e, ainda, protegido por uma suposta preferência dos jesuítas em suas missões catequistas, tem sido aceita por muita gente como uma explicação razoável sobre a opção portuguesa pela escravização de famílias africanas no Brasil. De outro lado, argumenta-se que muitas tribos indígenas tinham uma tradição guerreira, o que tornava sua captura muito difícil e custosa, resultando num volume reduzido de trabalho disponível, em relação à demanda das grandes lavouras de cana-de-açúcar. Abstraindo-se dos interesses ou mesmo dos limites teóricos de quem prefere se manter até hoje nessa linha de investigação, parece que a mesma segue por vias invertidas para explicar o que estava acontecendo naquele momento.

Primeiro, porque não se tratava de uma escolha eminentemente interna à Colônia. Segundo, porque uma outra pergunta deve anteceder à questão sobre o suposto dilema entre escravizar indígenas brasileiros ou importar famílias africanas: trata-se de se perguntar, primeiramente, por que a opção pelo regime escravista no lugar do trabalho livre. Mas esta questão também tem sido objeto de muito debate.

Fernando Novais propõe uma linha de abordagem que considero bastante interessante para explicar a opção escravista:

A colonização do Antigo Regime foi, pois, o universo paradisíaco do trabalho não livre, o eldorado enriquecedor da Europa. A explicação desse fato tem tocado à-revezes o pitoresco. Assim, argumentava-se, por exemplo, que os europeus haviam “recorrido” ao trabalho africano porque escasseava população na mãe-pátria com que povoar o Novo Mundo. A afirmação refere-se naturalmente a situações como a que se configurava ente o Brasil e Portugal; se invertermos as situações, por exemplo, a metrópole francesa em face das ilhas antilhanas, o argumento não faz sentido, aliás iniciou-se uma colonização de povoamento, que depois deu lugar ao escravismo. Por outro lado, em determinadas áreas prevaleceu o povoamento. Ademais, isso só provaria que os europeus ou que as metrópoles européias não dispunham de contingentes demográficos para povoar a América, e que “apelaram” então para a África... Nada explica, nesse argumento, que o tal “apelo” envolvesse nada menos que a escravidão dos negros: o que se tem de explicar, de fato, é o regime escravista de trabalho (NOVAIS, 2001, p. 98-99).

A proposta, então, é a análise para além da aparência dos acontecimentos, na busca do fundamento das relações mercantis que marcavam o processo de colonização naquele momento. Inclusive, sugere Fernando Novais, considerando apenas a interpretação lógico-formal dos movimentos que comandavam as transformações sócio-econômicas naquele período de transição ao capitalismo, pode-se chegar à equivocada conclusão de uma irracionalidade naquela tendência ao escravismo. Essa limitação teria levado Adam Smith, o pai da economia liberal, a considerar o escravismo como um apego incontrolável dos senhores de escravos à dominação. “Não terá naturalmente isto ocorrido por estupidez dos empresários coloniais, nem por suas taras dominadoras. É que a análise do problema não se pode limitar àquele plano lógico-formal” (NOVAIS, 2001,p. 100).

Recuperando Karl Marx, Fernando Novais propõe uma interpretação bastante interressante para a opção pelo escravismo em plena fase européia de emergência do trabalho assalariado:

Na consciência burguesa, é claro, o que se viu nesse longo processo histórico de formação do assalariado foi a “libertação” do trabalho das injunções servis, barbarismo antigo, exatamente porque na economia capitalista as relações mercantis do regime de trabalho velavam a nova forma de exploração (valorização através da gestação da mais-valia). O mesmo Marx, porém, implacável analista do mundo burguês, precisamente por ter levado sua análise para além de todas as mistificações da realidade, pôde constatar com nitidez que nas colônias eram desfavoráveis as condições de constituição do regime de trabalho “livre”, sempre havendo a possibilidade de o produtor-direto assalariado, apropriando-se de uma gleba de terra despovoada, transformar-se em produtor independente (NOVAIS, 2001, p. 101).

Aqui parece residir a essência do problema. A abundância das terras só aparece como uma dificuldade por conta das relações coloniais, que impediam o desenvolvimento de relações salariais no Brasil e em boa parte das demais colônias, exatamente pela exigência do exclusivo metropolitano. Em outras palavras, significava garantir o monopólio das grandes rotas de comércio sob o controle do grande capital mercantil sediado na metrópole. Caso se promovesse o trabalho livre nas colônias, onde existiam terras em abundância e sem relações prévias de propriedade, as famílias trabalhadoras poderiam migrar para o interior e criar seus próprios núcleos de produção, independentes do controle da metrópole, garantindo assim sua subsistência. Inclusive, longe do controle, os colonos poderiam chegar à geração de algum excedente que conduzisse a mercados livres na própria colônia, como acontecia nas colônias setentrionais da América, que se diferenciaram da produção monocultora com base no trabalho escravo, características encontradas somente nas terras meridionais da própria América do Norte.

O que estava em jogo, naquele momento, era a própria emergência do capitalismo. A magnitude dos investimentos iniciais exigia um volumoso processo de centralização de riquezas e, para isso, se utilizavam os mais bárbaros procedimentos de conquista: a guerra, a pirataria, o saque e até o extermínio de várias culturas e civilizações nativas. Tudo isso para garantir a superação dos entraves encontrados pelo capital mercantil à sua plena expansão. É neste sentido contraditório que a colonização ultramarina, organizada com base no trabalho escravo, fazia parte do processo de promoção da acumulação primitiva de capital. Ou seja, como uma imposição do progresso capitalista nas sociedades européias, que emergiam com toda pompa, afirmando os ideais libertários da burguesia nascente.

Nesse sentido, colonizar significava produzir em grande escala, com o maior grau possível de exploração propiciado pelo trabalho escravo e com a garantia de que a produção estaria voltada para atender às demandas da metrópole e aos interresses de maximização de lucro dos grandes comerciantes ultramarinos.

Essa explicação parece mais adequada para o entendimento da colonização escravista no Brasil. Inclusive, por superar dialeticamente as contribuições que se basearam no reduzido contingente populacional de Portugal no período. Mesmo Caio Prado Júnior (1998), um dos autores que considero entre os que precisam ser resgatados nesse debate, parece dar muita ênfase à carência de um contingente populacional em Portugal, “que não chegavam a dois milhões...” (p. 31), como um dos fatores para a escravidão no Brasil naquele período:

Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho escravo. Não somente Portugal não contava com população bastante para abastecer sua colônia de mão-de-obra suficiente, como também, já o vimos, o português, como qualquer outro colono europeu, não emigra para os trópicos, em princípio, para se engajar como simples trabalhador assalariado do campo. A escravidão torna-se assim uma necessidade: o problema e a solução foram idênticos em todas as colônias tropicais e mesmo subtropicais da América (PRADO JR.,1998, p. 34).

Colocado o debate sobre a escolha pela organização do trabalho escravo nas antigas colônias cabe agora voltar à questão sobre a opção pelo trabalho das famílias africanas no lugar do trabalho indígena nativo.

Da caça a indígenas aos navios negreiros

Caio Prado Jr. (1998) é categórico em rechaçar as teses de que as famílias indígenas nativas teriam sido preteridas por qualquer motivo como opção para o trabalho escravo. Muito ao contrário, desde a extração do pau-brasil o trabalho indígena foi utilizado no litoral brasileiro, e na medida em que se desenvolvia a agricultura “a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente em toda parte” (p. 35). A caça aos índios foi, inclusive, a motivação para as expedições das Bandeiras, já no século XVII, que vão chegar a grandes conflitos nas missões jesuítas, em território controlado pelos espanhóis, cujas vitórias bandeirantes acabarão expandindo as fronteiras do Brasil. “A caça ao índio será um dos principais fatores da grandeza atual do Brasil” (p. 36). E a substituição do trabalho indígena pelo negro ocorreu de forma diversa em cada região do País: “Far-se-á rapidamente em algumas regiões: Pernambuco, Bahia. Noutras será muito lento, e mesmo imperceptível em certas zonas mais pobres, como no Extremo-Norte (Amazônia), e até o séc. XIX em São Paulo” (p. 37).

Falta ainda explicar porque então ocorreu a substituição do trabalho indígena pelo negro. Voltemos a Fernando Novais (2001) que, sem desprezar todas as dificuldades de se conseguir um contingente indígena nativo suficiente à produção em larga escala, prefere explicar a preferência pelo trabalho escravo africano pelas próprias exigências do sistema mercantilista de promover a acumulação primitiva centralizada na metrópole. O tráfico negreiro foi se constituindo uma peça importante na engrenagem de acumulação do grande capital mercantil, que controlava as rotas ultramarinas. Ao contrário disso, todo o esforço pela caça aos indígenas nativos se constituía um negócio interno da colônia. Conclusão: “Paradoxalmente, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário” (NOVAIS, 2001, p. 105).

Outras considerações

Parece, assim, que a raiz dos problemas enfrentados pelos povos africanos e indígenas no Antigo Regime Colonial foi a solução encontrada pelo capital mercantil no processo de acumulação primitiva na alvorada capitalista. Nascendo nas condições apresentadas acima, não seria de se esperar que as relações do capital se coadunassem exatamente com as designações da liberdade, da igualdade e da fraternidade, apesar do conhecido brado das revoluções burguesas do século XVIII.

A proposição deste artigo é chamar a atenção para as relações sociais e para os interesses escamoteados nas falsas explicações sobre o passado brasileiro. Talvez, as reflexões acima ajudem a entender um pouco mais a origem das discriminações étnicas, tão bem refletidas nos atuais mercados de trabalho no Brasil e em tantas outras modalidades da nossa vida social. Mais que isso, devemos pensar se é possível alcançar a democracia étnica enquanto perdurarem entre nós as relações do capital.

Referências

PRADO JR., Caio. Hitória econômica do Brasil. 45ª reimpr. São Paulo : Brasiliense, 1998.
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). 7 ed. São Paulo : HUCITEC, 2001.

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