Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O modo capitalista de envolver

Helder Gomes

Diante da evidente ampliação das desigualdades sociais voltam ao debate público temas relativos às formas de intervenção do Estado. Sob a pressão da realidade, governantes de várias esferas procuram responder aos reclames com várias propostas de revisão das prioridades orçamentárias, apontando inclusive com alguns instrumentos de ampliação dos debates sobre investimentos públicos e privados. Entretanto, essas iniciativas dos governos coincidem com o calendário eleitoral, o que traz ainda mais suspeita sobre suas verdadeiras intenções, deixando no ar vários questionamentos.

O centro do debate atual

Novamente vêm à tona questões relativas à necessidade e à capacidade do Estado em promover as intervenções necessárias à reorientação dos investimentos. De um lado, esse debate é retomado devido à percepção de uma maior depauperação das camadas médias das famílias trabalhadoras que, com alguma capacidade de pressão política (mesmo com o movimento sindical em baixa), acabam de uma forma ou outra incomodando as autoridades e influenciando os demais membros de classe. A concentração do financiamento estatal em segmentos econômicos intensivos em capital, voltados para a exportação, resulta num alto nível de desemprego e em reduzidos níveis de remuneração, sem perspectivas de potencializar a produção voltada para o consumo interno e seus possíveis efeitos multiplicadores. Daí o apelo por políticas públicas que privilegiem investimentos em pequenas e médias empresas, de segmentos econômicos tradicionais etc.

De outro lado, a ampliação dos problemas da violência e do adensamento dos centros urbanos recoloca as questões relativas à reorientação espacial dos investimentos a partir da intervenção estatal. Defende-se que o Estado deve ampliar os programas de reforma agrária, despender maiores recursos para a agricultura familiar e fomentar a agroindústria e a produção mineral, como forma de “interiorizar o desenvolvimento”.

Além disso, com o argumento da consolidação do processo democrático, trabalha-se com a ampliação dos espaços de debate para a definição dos novos investimentos. As questões neste campo se referem ao grau de abertura dos temas para discussão pública, predominando a tese de que sua complexidade muitas vezes pode exigir alguma restrição, sendo mais prudente mantê-los entre especialistas, ou tratá-los indiretamente por meio de representações políticas acompanhadas das devidas assessorias. É sobre esta questão das consultas públicas e da participação popular restringida que procura tratar este breve texto.

Os limites do debate

O mais prudente mesmo é avançar para além da dimensão aparente em que se mantêm esse debate. Só assim é possível observar as armadilhas políticas, desenvolvidas na forma de discussão apresentada acima, que só interessam aos grupos políticos responsáveis pela manutenção da ordem econômica e política que, em crise, procuram espaços para sua legitimação social.

Vendo mais de perto é possível perceber como são articuladas essas formas de afirmação política. As decisões “pelo alto” determinam autoritariamente a adequação a um regime de acumulação, cada vez mais centralizador de riquezas em escala mundial, que precisam ser legitimadas por aparentes instrumentos de desenvolvimento econômico e social. Estes mecanismos, por sua vez, podem até ser debatidos mais amplamente, desde que obedeçam a uma escala hierárquica de instâncias de decisão. Isso cria ordens distintas de debate e de definições de políticas públicas, indo da vedação total a alguma possibilidade de participação indireta.

As decisões macroeconômicas devem estar livres das pressões populares (no discurso, livre de manifestações populistas). Em termos concretos, no nosso caso, a política econômica geral não pode estar em questão, pois, combina a ampliação do endividamento público com o financiamento ao esforço exportador, cuja lógica garante a transferência de riquezas dentro do regime de acumulação dominante. Mas, para que tal perspectiva possa ser operada com eficiência e obtenha os resultados financeiros esperados, se coloca como condição a abertura de espaços de participação sobre temas tidos como marginais. Mesmo que limitado, abre-se assim a possibilidade de debate sobre as franjas do processo de acumulação capitalista, sobre a ampliação das possibilidades individuais de emprego, sobre como dirimir (uma vez que não teria como evitá-los) os impactos ambientais dos investimentos públicos e privados etc.

Num ano eleitoral...

Por isso o cuidado em não se aceitar acriticamente o convite para participar dos fóruns sobre políticas de desenvolvimento que são anunciados neste momento. É preciso atentar para os temas colocados para discussão e, mais ainda, para os efeitos das supostas deliberações.

Cabe avaliar a abrangência dos instrumentos de participação e de escolha das representações. Da mesma forma, vale a pena questionar se os resultados dos debates terão uma efetiva contribuição para as alterações que a maioria da sociedade deseja, ou, ao contrário, se só servirão para a legitimação de projetos pré-concebidos em gabinetes públicos e privados, estejam estes localizados em nível local, ou, bem mais distantes da capacidade de intervenção das camadas populares.

Outras considerações

As experiências do Orçamento Participativo ensinam os limites desses fóruns de debate ou de “decisão”. Fica cada vez mais nítido que a participação popular nas decisões de Estado não combina com este modelo de sociedade, cujo motor primordial é a busca pela diferença e cuja dominação atende aos interesses dos diferentes. Menos ainda têm-se a perspectiva de ampliação de espaços de participação, especialmente em questões estratégicas, num momento em que se assiste ao aprofundamento do domínio da ganância financeira parasitária que, diante da crise econômica, não vê limites em sua obstinação, operando inclusive na informalidade de ações criminosas, sob a proteção estatal.

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