Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito da vontade política

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

A ideia do Estado como ente externo, que paira sobre a sociedade com o propósito de garantir o cumprimento de um tal pacto social, cujo fundamento seria promover o bem comum, parece estar muito mais introjetada do que se possa imaginar. Por isso, normalmente as pessoas criticam governantes de plantão exatamente por um suposto afastamento do tal princípio pétreo da edificação do bem-estar social, como se estivessem violando o próprio sentido de sua eleição. Ao lado dessa concepção, que se generaliza e se entranha facilmente, há de imediato a solução do problema dentro da ordem democrática, por meio do revezamento governamental; ou seja, a substituição periódica de governantes possibilitaria a eleição de alguém mais responsável aos compromissos do mandato delegado pelo voto popular.

Aos/às entusiastas do chamado Estado democrático de direito, sugiro a leitura do texto “O mito do mandato presidencial”, de Robert Dahl, o qual também parecia acreditar na redenção política por meio da democracia representativa, desde que se operasse alguns ajustes constitucionais que considerava fundamentais. Dando seguimento aos dois textos anteriores, pretendo tratar aqui de uma derivação dessas ideias liberais mais gerais. Em particular, pontuo o tema da vontade política de governantes, considerando o calor e, ao mesmo tempo, a superficialidade dos debates, marcas registradas dos períodos pré-eleitorais. Nesses momentos, de parte a parte, o método escolhido tem sido o das quantidades, pois, quanto menos qualidade na peleja melhor, quando a disputa se baseia na apresentação do mais isso e do menos aquilo como parâmetros de comparação de potenciais elegíveis.

Nesse jogo político, as experiências de governos recentes sempre vêm à tona e os ataques se pautam numa tal ausência de vontade política para terem feito, ou para não terem feito, algo que se supõe ter alguma expressão, de aceitação ou de negação, no seio do povo.

Findo o pleito, há sempre quem continue surfando na crista da onda, confiante nos arroubos ideológicos do mandato supostamente delegado pelo eleitorado, independente da proporção, ou do volume, de votos efetivamente alcançados. Não cabe questionar a qualidade e nem sequer a forma de convencimento operada. De outro lado, após a perda da peleja, há também quem caia da prancha, em mergulho profundo na realidade que o/a cerca, mas, logo vem outro período eleitoral. Então, melhor legitimar o tal mandato adversário em vigor, sob o risco de melar, como um todo, a reprodução periódica do campeonato.

Nesse embalo, perdem-se de vez as perspectivas qualitativamente críticas, situação agravada pela difusão exponencial do sofisticado aparato cibernético em curso. Algoritmos são intensivamente utilizados, para apurar, mas, também para induzir com mais precisão o que classicamente eram sugeridas como posições da “vontade do povo” a cada momento. No mesmo ritmo que as novas tecnologias reproduzem a impessoalidade nas relações de produção e a promoção do reino de descartáveis para o trabalho, cada vez mais se banalizam as formas de personificação da política. A partir daí, marqueteiros/as substituem peças de apresentação das propostas dos respectivos programas de governo por fotos de seminus, em que o público passa a apreciar, comentar e julgar as virtudes físicas, não as intelectuais, de cada pleiteante aos cargos supremos do poder, por exemplo.

Porém, atenção nunca é demais. Diante do atual movimento de banalização da política, qualquer arroubo de qualidade pode parecer suficiente e, novamente, se reproduz a cantilena do salvador da pátria, de que basta ter vontade política… não dá para embarcar nessa. A situação exige mais que a boa vontade messiânica de algumas lideranças, pois, por mais carismáticas que sejam, a realidade não muda apenas por seus desejos de se reproduzir como mais um mito, ou como qualquer outra dessas denominações mais banais.

Temos condições de ousar mais!!! Ousemos, pois!!!

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