Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Informalidade no âmago do Estado subalterno

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Desde o período da graduação me deparei com o desafio deste tema. Muitas vezes fui desestimulado a seguir em sua investigação, sob a alegação de professores de que este não seria objeto da Economia Política, me indicando outros caminhos de dedicação acadêmica. No entanto, minha própria atuação profissional e a formação na pós-graduação acabaram me revelando a necessidade de considerar a informalidade, em especial, para entender mais precisamente a formação histórica brasileira e as heranças contemporâneas do processo inorgânico de descolonização, que resultaram na forma subalterna do Estado por aqui.

É preciso termos nítido que, ao expandir seus domínios por estas bandas, o Reino de Portugal enviou para o comando da colonização membros de um estrato bastante peculiar de sua nobreza. O território inicialmente conquistado foi dividido em extensas capitanias hereditárias e entregues como posses a fidalgos, com a missão de recrutar em Portugal pessoas dispostas à aventura de disputar a terra até então ocupada pelos povos nativos e adequá-las aos empreendimentos coloniais. Os membros da fidalguia não possuíam títulos hereditários de nobreza na Península Ibérica, pois, sua nomeação estava restrita ao direto de uso de armas e outras poucas prerrogativas, como recompensa a alguma participação nas guerras de conquista junto aos estrados superiores da nobreza.

Podemos perceber, assim, a origem das elites brasileiras. Desde a época de D. Manoel I, até D. João VI e sua fuga para o Brasil, as transações mercantis formais se confundiam com toda forma de saques, pirataria e destruição, cuja principal marca foi a desumanização do trabalho por meio da escravidão. Colonizar significava guerrear, expropriar, destruir culturas nativas, proteger territórios conquistados da invasão de outros reinos, o que exigia algum plano de ocupação e de arranjos protetivos à produção. As primeiras iniciativas de ocupar o território do pau-brasil exigiam uma intricada rede de intermediação de interesses conflituosos, envolvendo, de um lado, o poder da nobreza e do clero católico português e, de outro, as artimanhas e trapaças dos mercadores, dos usurários e dos novos colonos, que se tornavam grandes negociadores de pessoas escravizadas e dos produtos coloniais, em pleno reino da informalidade.

A fuga da família real para o Brasil, em 1808, significou o início da descolonização. Logo depois, o território brasileiro se tornaria a sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tendo o Rio de Janeiro como capital, quando foram intensificadas as atividades de um mercado particular: a compra e venda de títulos de nobreza em solo brasileiro. Com o propósito de financiar os gastos da corte, nascia a oportunidade para o surgimento do estrato social dos barões do café que, mais tarde, se tornaria determinante nos desígnios do país, com influência econômica, social e cultural até pelo menos a Primeira República, quando se diluiu em meio à política dos coronéis.

A descolonização até hoje inacabada é fruto, portanto, de uma saga republicana própria. O rompimento inorgânico com as bases do Antigo Sistema Colonial, da forma como foi operado, para atender aos interesses da acumulação cada vez mais centralizada nas potências imperialistas emergentes, exigiu mesclar aqui a modernização das relações mercantis e a constituição de um Estado de direito com toda sorte de informalidade.

À independência política formal republicana correspondeu a manutenção de um território predominantemente extrator e conversor industrial do patrimônio natural em matérias primas voltadas para exportação. Ao se integrar de forma subordinada ao processo internacional de industrialização, acolhendo internamente apenas alguns elos das cadeias produtivas organizadas em nível mundial, as elites no comando do novo Estado-nação brasileiro se moldaram a tarefa de garantir a continuidade da transferência líquida de riquezas para o exterior, na forma de mercadorias, juros, lucros, dividendos, royalties etc.

Se em escala majoritária volumes crescentes de riquezas têm que ser continuamente transferidos para as grandes potências imperialistas, o que fica retido nem sempre é distribuído de forma amistosa. A modernização incompleta exige, então, uma complementaridade de mão dupla entre modalidades bastante avançadas de mercantilização capitalista com as antigas formas violentas, em muitos países consideradas criminosas, de acumulação. Isso envolve relações de trabalho bem próximas da escravidão, mas, também, o contrabando de mercadorias, o roubo de cargas, o tráfico empresarial de drogas, de armas e de pessoas e apropriação informal de recursos públicos por meio toda sorte de fraude em licitações etc.

Veio dessa caminhada interpretativa o meu vaticínio, no início de janeiro deste ano, de que a proposta de mercantilização privada das vacinas contra a Covid-19 tornaria factível seu contrabando empresarial, o que sugeria a formação de um mercado paralelo como o verdadeiro objetivo.

COMPARTILHE: