Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

As bobagens de ontem e de hoje

Helder Gomes

Volta e meia somos surpreendidos com temas que aparecem na mídia como grandes tendências mundiais e que logo se revelam uma farsa. Uma viagem no tempo nos permitiria recuperar algumas dessas pérolas do jornalismo, colhidas e lapidadas junto a especialistas de diversas áreas, que aparecem e somem do noticiário, deixando um rastro de embriões para novas transmutações verbais, de grande conteúdo político e ideológico.

Invariavelmente, as idéias lançadas por traz do noticiário cotidiano procuram comparar as relações sociais com o mundo selvagem. Assim, os conflitos de interesses são apresentados como algo muito natural e, ao mesmo tempo, como fenômenos críticos que sempre levam ao equilíbrio e à harmonia. Há uns vinte anos atrás, a atualização tecnológica das empresas e de seus produtos era acompanhada do mais expressivo acontecimento político das últimas décadas, o fim da União Soviética, motivando a importação para o Brasil de um conjunto de novos termos contendo idéias maravilhosas: o mundo caminharia inevitavelmente para a paz globalizada.

Na impossibilidade(?) de uma viagem ao passado, cabe aqui recuperar algumas mostras do que loteava o noticiário da mídia nacional nos anos 1980 e 90, procurando alguma oportunidade de comparação com o que vemos e ouvimos na atualidade.

A política e a ideologia

Naquele momento, Francis Fukuyama vaticinava “O fim da história”, apoiando-se na idéia de que o capitalismo seria o ápice da evolução da humanidade. Não fazia mais sentido se pensar em grandes transformações sociais, a história teria se realizado em sua plenitude e as evidências disso estariam numa suposta trajetória de harmonização das relações entre o capital e o trabalho. Num ambiente daquele não haveria mais espaço para se pensar a realidade a partir da luta de classes.

Na tradução mais direta dessas formas de pensar, os arautos dos matutinos brasileiros repetiam com toda firmeza que não fazia mais sentido pensar a política com base na existência de divergências entre a esquerda e a direita. O mundo caminharia inexoravelmente para a harmonia de uma aldeia global. Segundo a mídia, na virada para os anos 1990, apenas alguns resquícios dos dinossauros insistiam em não perceber essa nova realidade.

A idéia de uma globalização econômica, política e cultural aparecia nos telejornais como fenômeno evidente no final dos anos 1980. Ninguém poderia imaginar que ainda existiriam povos tão resistentes à cultura ocidental como tem se mostrado, na realidade, os muçulmanos. Da mesma forma, diante da propaganda da harmonia global, jamais se poderia imaginar que o Oriente Médio seria tão violentamente atacado, como acabou acontecendo com as últimas investidas bélicas, tanto dos Estados Unidos quanto do Estado de Israel, ou mesmo que tantos países vivam hoje sobre a ameaça de terem o mesmo tratamento do Tio Sam.

As empresas e a sociedade

Idéias ainda mais arrojadas foram sendo forjadas naquele momento no campo das decisões empresariais. A proposta de rompimento com o passado, com a história enfim, alcançou as decisões de investimentos no âmbito organizacional, levando muitas empresas a jogar no ralo todo um conhecimento tecnológico acumulado em décadas: a reengenharia tornava-se a panacéia para as dificuldades de produção e de realização de vários empreendimentos. Na mídia especializada e na imprensa em geral não se falava em outra coisa, a não ser a necessidade das empresas se reestruturarem, com base nas novas tecnologias de organização e de métodos de gestão proporcionada pela reengenharia. Não tardou muito para as evidências enterrarem de vez aquelas iniciativas, mas foi tempo suficiente para uma quebradeira significativa de muitas empresas que entraram naquela barca furada.

A qualidade total, advinda das experiências orientais, avançou com mais sucesso. Dela ressurgiu toda a ideologia da seleção natural dos mais aptos e da competição individual, extrapolando em muito os ambientes internos dos processos produtivos e dos serviços que passaram a adotá-la como orientação organizacional. A partir dali, a mídia tratou de naturalizar o fato de que a reestruturação das empresas reproduzia comportamentos sociais pouco solidários, procurando tornar a competição individual uma atitude cotidiana bastante positiva e natural. Os filmes sobre a selvageria no reino animal passaram a ser ilustrações perfeitas para a apologia à naturalidade do individualismo como prática social.

As privatizações

Esse foi um período em que também coube aos telejornais e à mídia impressa a tarefa de divulgar as linhas mestras do receituário neoliberal para as relações do Estado. A privatização de empresas e dos serviços públicos foi colocada como condição sine qua non para a elevação da economia brasileira ao estrelato das maiores potências do planeta.

Entretanto, as conseqüências das privatizações têm sido um desastre no Brasil. Além de todas as denúncias não apuradas de malversação de recursos públicos no processo de privatizações, atualmente as empresas privatizadas, especialmente as que prestam serviços diretos ao consumidor (de telefonia, energia, transportes etc.), encabeçam todas as listas de reclamações dos Procons e cobram maiores tarifas dos consumidores. Os serviços particulares de saúde e educação cada vez mais se mostram vorazes cobradores de mensalidades absurdas que, longe de serem acompanhadas de elevação da qualidade, deixam ao Estado a tarefa da universalização de serviços essenciais, sem que este esteja orientado para tal.

A cidadania que segundo as propagandas adviria das privatizações se mostrou o seu inverso. Houve na verdade uma dupla conversão. De um lado, converteram parcela do povo em consumidores de bens e serviços absurdamente caros e sem qualidade. De outro lado, tornaram supostos/as cidadãos/ãs, que vivem de salário, em supercontribuintes, de impostos diretos e indiretos, sem que os recursos da tributação adicional sejam revertidos em serviços públicos essenciais.

A macroeconomia na atualidade da mídia

Nos dias atuais, a mídia parece estar perdida diante da realidade que não conseguia vislumbrar tempos atrás. Mas, não é de se esperar que os arautos do bem-estar natural se emendem, ou se dobrem diante da realidade, pois, essa não é a sua função. Na busca de manter suas atribuições, a linha editorial tem sido a macroeconomia.

Após seguidas décadas de divulgação do receituário ortodoxo de controle da inflação a mídia se vê perplexa. Em suas certezas jornalísticas, jamais poderiam imaginar que exatamente um governo de “esquerda” cumpriria tão rigorosa agenda macroeconômica, atendendo às imposições do governo estadunidense e das agências multilaterais (FMI e BIRD). Por isso, diante da incapacidade da economia brasileira gerar o espetáculo do crescimento, a imprensa vacila entre desconfiar da competência do governo em cumprir suas promessas de campanha, ou agradá-lo, pelo simples fato de ser governo.

Ser governo não é pouca coisa não. Não podemos esquecer que boa parte da mídia nacional tem muito a agradecer ao governo atual, mas não apenas pela sua entrega total aos apelos da propaganda, que converte seus programas sociais de laboratório em fábulas sobre a inclusão econômica das camadas empobrecidas do povo brasileiro. Agradam o governo, especialmente, por seus meritórios esforços para salvar as próprias empresas de comunicação da falência. Empresas que acreditaram em suas próprias armadilhas, de que estávamos num mundo pós-industrial e que meteram a mão na jaca: abarrotaram-se em investimentos mal sucedidos, acreditando que, enfim, viera a sua própria redenção. Acreditaram que estávamos mesmo vivendo uma nova sociedade, a sociedade da informação. Será?

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