Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Primaverar é preciso!

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

“[...] Salvaguarda da propriedade etc. Quando se reduzem essas trivialidades a seu conteúdo real, elas expressam mais do que sabem seus pregadores, isto é, que cada forma de produção cria suas relações de direito, suas formas de governo próprias. A grosseria e a incompreensão consistem precisamente em não relacionar senão fortuitamente umas às outras, em não enlaçar, senão no domínio da reflexão, elementos que se acham unidos organicamente. A noção que flutua no espírito dos economistas burgueses é que a polícia é mais favorável à produção que o direito do mais forte. Esquecem unicamente que o direito do mais forte é também um direito, e que o direito do mais forte sobrevive ainda sob outra forma em seu ‘Estado de direito’”.

Karl Marx

Desde o famoso Leviatã, de Thomas Hobbes, ganhou força a concepção de que a origem do Estado estaria vinculada à necessidade natural da vida em sociedade. Mais adiante, essa afirmação seria adequada à ideia de que o Estado seria um mal necessário, que substituiria a lei do mais forte por meio de um pacto social, evitando assim que as diferenças entre indivíduos levassem naturalmente à barbárie. Interessante notar, nessas acepções, o afastamento da noção de classes sociais. As sociedades seriam compostas por indivíduos, cujas diversidades naturais seriam homogeneizadas pelo contrato de alienação da soberania individual, em favor de alguma forma de convívio social. Esta seria a condição para a requerida igualação das oportunidades individuais, especialmente aquelas inerentes ao direito à propriedade e à liberdade.

A escolha aqui é tratar de um aspecto particular das ideias liberais contemporâneas sobre o caráter do Estado. Em especial, lembrar que a partir do início do século XX, ganharam grande expressão afirmativas acerca do monopólio estatal da violência, as quais parecem bem próximas da ideia de que seria bastante natural que indivíduos abrissem mão de sua soberania distintiva, temendo a barbárie, ante o risco iminente de uma guerra de todos contra todos. Ideias assim parecem se apoiar em métodos que procuram explicar os dilemas do capitalismo a partir de modelos ideais e, não raramente, sua vulgarização se afasta da busca por explicações e se aproxima muito mais da difusão de alegorias: como a vida social seria melhor se fosse...

É preciso sempre relembrar que, para além dos exercícios de apologia à ordem do capital, como a única possível, a emergência e a consolidação do capitalismo não significaram a substituição da força pelo reino da liberdade, como apregoam por aí. Se é assim, vejamos!

Em nossas interpretações não podemos generalizar situações isoladas. Entretanto, muitas vezes, aqueles que parecem ser casos solitários, podem se revelar como norma na ordem vigente, quando se dispõe a enxergar para além das aparências. Não seria disso que se trata, por exemplo, quando se observa a incorporação à ordem das condições para a violência escarpar do monopólio do Estado, a partir da autonomia relativa que ganham determinados/as agentes que atuam, sob contrato público, exatamente para exercer o poder de polícia, ou, da defesa nacional?

Em determinados contextos, a ordem idealizada colocada em função não dá conta de conter os ânimos de descontentes que agitam alguma forma mais radical de contestação. Mas, não se trata apenas de contestações promovidas por entidades organizadas tais como sindicatos, pois, também, há movimentos de revolta contra a truculência do grande capital, ao expulsar famílias indígenas, quilombolas e ribeirinhos, sob a bandeira do progresso, dos grandes investimentos produtivos. Existe, ainda, aqueles resultantes da violência cotidiana promovida pela relação entre o tráfico empresarial de drogas, armas, pessoas e as forças policiais nas favelas urbanas. Esses são momentos em que as forças sociais dominantes reagem ante qualquer ameaça e criam oportunidades para que surjam soluções informais de contenção. Assim, pessoas de fora e de dentro dos aparelhos estatais são contratadas, armadas e treinadas para a punição e o extermínio das forças contestadoras. A história está repleta de experiências assim.

Entretanto, não estamos falando de momentos esporádicos, em que as ameaças à ordem logo são reacomodadas pela violência. Estamos vivendo um acúmulo de décadas de crises, gerando toda sorte de perdas de condições de vida, no campo e na cidade para a maioria das famílias. Se tomarmos os últimos 60 anos, podemos perceber que, durante todo esse período, a América Latina, por exemplo, foi palco para toda sorte de experiências de exacerbação do uso da violência por agentes estatais, mas, em especial, para o surgimento de várias composições paramilitares, voltadas para o exercício da força, da coerção.

São exemplos disso a formação dos esquadrões da morte, das milícias e outros grupos de extermínio, no Brasil, criados a partir de membros afastados das forças estatais de repressão, mas, que também contam com a participação de agentes públicos da ativa, militares e civis, além de várias pessoas recrutadas na sociedade em geral.

Não se trata, portanto, de pontos fora da curva, ou, de algumas maçãs podres num grande cesto, como gostam de alardear por aí os fanfarrões. À primeira vista, parece legítimo que quem pautou sua trajetória política nos limites da ordem eleitoral vigente esteja na dianteira da defesa do Estado de direito e de suas instituições. No entanto, os novos tempos permitem também quebrar o monopólio da mídia proprietária, proporcionando a explicitação da violência a olho nu, não como exceção, mas, como norma cotidiana, especialmente aquela orientada para as camadas sociais que não tiveram a oportunidade de se proteger do emaranhado que mescla modernidade empresarial com toda forma de acumulação violenta de capital.

A escolha entre interpretar ou fantasiar a realidade parece sempre depender das circunstâncias. Mas, entre essas circunstâncias podem estar também os acidentes de caráter, como nos ensina Marx, em uma de suas cartas a Kugelmann, de 1871. Há muitos interesses em jogo. Fiquemos vigilantes.

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