Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Falta verbo

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Filme também é oportunidade de aprendizado político. Numa cena interessante do filme “Antonia – uma sinfonia”, a Sra. Thomsen, toda preocupada com a chegada inusitada de uma jovem desconhecida a seu ciclo social, questiona a ideia, a seu ver estapafúrdia, daquela estranha criatura pretender quebrar as regras de um universo estritamente masculino e se tornar uma maestrina, nos Estados Unidos, em plenos anos 1920. O diálogo de rispidez enrustida, entre a pianista Antonia Brico e a referida socialite, à mesa do jantar em homenagem ao reconhecido regente holandês Willem Mengelberg, ocorre quando a anfitriã pergunta se não seria muita audácia uma jovem mulher com aquelas pretensões. Antonia, se identificando como conterrânea do homenageado, responde indagando: “Os Estados Unidos não são a terra da oportunidade?” A tréplica carrega todo o sarcasmo do mundo: “Não para todos”.

Óbvio, há sempre a possibilidade de interpretar o enredo total do drama como uma apologia, pois, se a oportunidade não seria para todos, significaria a necessidade de sacrifício da vida pessoal para a protagonista estar incluída entre vencedores/as. Mas, como o filme fecha com informações sobre a ausência sistemática de mulheres nas repetidas classificações periódicas de rankings sobre “os” maiores regentes do mundo, isso pode sugerir alguma denúncia sobre a marginalidade da presença feminina nesse universo, mesmo que destaque o pioneirismo da vitoriosa persistência individual da maestrina Antonia Brico.

Penso sobre este filme ao mesmo tempo em que recebo as primeiras notícias sobre a realização da COP-26 na Escócia. Há muita gente, nos vários campos políticos, que explícita ou tacitamente embala em suas divagações a possibilidade de humanização do capitalismo. Pior ainda, em plena explicitação da crise sistêmica das relações contraditórias do capital, há quem defenda a viabilidade de generalização do bem-estar, desde que haja uma reversão política no sentido de recuperação do tal protagonismo estatal, na retomada do planejamento das políticas de desenvolvimento.

Enquanto isso, quem tem o poder efetivo de decisão sobre as políticas colocadas em curso pelos/as governantes também mantêm a mídia proprietária centrada implicitamente na tarefa de fomentar a necessidade de sacrifício individual em torno da salvação deste estado das coisas.

Após os resultados das 25 cúpulas semelhantes a esta COP-26, parece ficar cada vez mais nítida a enrascada que nos meteram as tais relações do capital. Entretanto, os/as especialistas insistem que devemos mudar o rumo sob o risco de perdermos o time e ultrapassarmos o ponto de não retorno do que chamam de “alterações climáticas antrópicas”. Segundo essa perspectiva, a depredação socioambiental-sanitária em curso e suas consequências críticas, em termos civilizatórios, seriam resultado da ação de um ser humano genérico. Aqui fica escondido que as oportunidades não são para todos/as e que, por isso, apenas um grupo seleto de lideranças proprietárias teve, ao longo do tempo, o poder efetivo de decidir sobre a vida dos demais, os/as mortais, descartáveis, do planeta. O objetivo não fica tão explícito: preservar as elites capitalistas da responsabilização pelos desastres que se acumulam e que não conseguem mais esconder.

Ao contrário de propor maior rigor no controle do desmatamento e das emissões de poluentes, as tais cúpulas internacionais se dobraram aos apelos empresariais em torno da criação de maiores oportunidades de mercantilização da proteção da natureza e, assim, criaram os tais pagamentos por serviços ambientais (PSA).

Por trás dessas decisões de cúpula está o ideário para consolidar as teorias criadas por especialistas contratados para defender a possibilidade de compensação de danos ambientais. Tais especialistas procuram quantificar e converter em preços de mercado tanto a emissão de poluentes, quanto a prestação de serviços ambientais, criando assim um mercado específico de suposta compensação mundial da depredação ecológica produzida pelos projetos de expansão produtiva.

Para isso, criaram a ideia de empresas poluidoras-pagadoras. Equipes técnicas são contratadas para mensurar, via preço de mercado, o volume de biodiversidade devastada e, com isso, procuram compensar as perdas ambientais com alguma forma de projeto de preservação em um outro ecossistema mercantilizado. Com isso, empresas plantadoras de monoculturas (eucalipto, seringueira etc.), por exemplo, deixariam de ser consideradas devastadoras das florestas naturais, passando a ser reconhecidas socialmente como promotoras de compensações ambientais, por meio da fixação de carbono nas árvores plantadas em regime de monocultura.

Boa parte do reconhecimento social dessas propostas das chamadas cúpulas do clima resulta da adesão acrítica de intelectuais, sem tanta formação, ou movidos por algum interesse particular, que procuram difundir neologismos, enquanto cativam sua própria mediocridade. Assim, ao lado das famosas “narrativas”, o termo resiliência tem sido também muito vulgarizado na perspectiva de adaptação ao que chamam de novo normal: o que seria uma suposta inexorabilidade de mais uma “nova era” e tantas outras bobagens que embalam a ideologia dominante enquanto avança o acirramento das contradições do capital em crise.

São bobagens, mas, pegam. E levam na onda inclusive quem se acreditava ilustrado/a. Além de interpretar com maior rigor, é preciso agir e rápido. Uma vez fundidos, sonhos e planos fazem com que a crítica aconteça de forma mais construtiva para os interesses da humanidade em sua plenitude. Como nos ensinou o poeta, “esperar não é saber”.

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