Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O neoliberalismo ameaça a humanidade

Helder Gomes

Semanas atrás escrevi um breve texto sobre a democracia liberal e suas armadilhas político-ideológicas e volto ao tema ainda mais inspirado. O motivo foi uma palestra do Dr. Remy Herrera, professor de Economia do Desenvolvimento na Universidade de Paris I – Panthéon Sorbone, que fez parte no último dia 15 do Seminário Internacional “Política Social na Atualidade”, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social da UFES. O título da palestra já dizia tudo: “O Estado neoliberal contra as políticas sociais: teorias e práticas”. Herrera fez uma crítica à visão teórica predominante, da possibilidade de um Estado neutro, capaz de satisfazer as demandas expressas na sociedade como um todo, sem distinção de classes sociais.

A contribuição do palestrante se centrou numa síntese da forma como os Estados nacionais capitalistas foram amalgamados pelo domínio da especulação financeira nas últimas décadas. Em bom espanhol, o professor francês demonstrou em suas reflexões o risco iminente da exterminação de boa parte da humanidade, diante da impossibilidade de se gestar o financiamento de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento econômico e social (nem mesmo para as políticas compensatórias). Essa situação se acirra, na medida em que se exigem ainda mais recursos oriundos de tributação sobre a sociedade, para o pagamento de juros e encargos das dívidas públicas. Vejamos alguns fragmentos das reflexões da palestra.

A visão predominante de Estado

No início de sua palestra o Prof. Remy Herrera enfatizou um aspecto fundamental da teoria política liberal: nessa concepção o Estado aparece como uma abstração política exterior aos seres humanos e a democracia como um conceito universal. Partindo desse viés analítico, os liberais apresentam uma imagem inversa da sociedade civil, mascarando a natureza da organização social capitalista em classes antagônicas, ou seja, escondendo a luta de classes entre proprietários exploradores e expropriados. Além disso, a democracia como conceito em si pode ser denunciada como uma ideologia jurídica (sobre os direitos da cidadania), criada a partir dos interesses dos proprietários privados.

A visão da exterioridade do Estado e da democracia como conceito universal foi apropriada pela Economia Neoclássica, que é o pensamento econômico dominante, afirmou Herrera. Contrapondo-se a essa visão, trabalhando com os fundamentos da acumulação capitalista na atualidade, o pesquisador recuperou uma passagem de Karl Marx, quando analisou o papel da dívida pública como forma de garantir a acumulação. Segundo este ponto de vista, os processos de endividamento financeiro do Estado confundem os negócios públicos com os negócios privados o que, por si, negam a concepção de um Estado neutro e externo, pois, fica mais explícita a submissão dos processos políticos aos interesses dos proprietários exploradores.

Para o palestrante, o Estado capitalista não é somente um instrumento, ou um objeto de poder, mas, uma relação social, que unifica as várias frações da classe dominante e, assim, garante a exploração. Unificando esses interesses, o Estado impede os efeitos auto-destrutivos da concorrência entre os capitalistas, garantindo a supremacia dos interesses gerais da classe dominante como um todo (a exploração e a acumulação de capital), sempre ameaçados pela ganância presente em cada unidade de capital.

Entretanto, alertou Herrera, o Estado também é o lugar essencial da luta de classes, onde os conflitos se manifestam e de alguma forma são resolvidos. Quando o Estado perde essa função, se instaura alguma crise política. Para o palestrante, o Estado capitalista é a consciência do capital, age contra as ações exterminadoras deste e, por isso, em muitos momentos, tem que aceitar debater questões como os direitos dos explorados.

Mas, então, pergunta Herrera, porque o Estado destrói os serviços públicos na atualidade? Quem os destrói? Responde: las finanças. Ou seja, o rentismo financeiro dominante, organizado a partir dos Estados Unidos.

A dominação neoliberal

Para garantir os interesses dos que vivem da renda financeira, o Estado, através de seus governantes, precisa destruir os serviços públicos. Isso, porque o capitalismo reproduz há algumas décadas uma grande crise estrutural, tendo como um dos mais significativos sintomas dessa crise a acumulação pela via da dívida pública, cuja ganância por juros impede o financiamento de serviços públicos essenciais. Daí a “necessidade” de privatização dos serviços públicos. Um exemplo nítido disso, para o caso brasileiro, são as famosas PPPs (Parcerias Público-Privadas) do Lula, explica o Prof. Herrera.

Além dos serviços públicos essenciais (saúde, educação, previdência etc.), que o Estado endividado não tem condições de financiar (por estar amarrado à armadilha de conversão de impostos em juros), os setores mais rentáveis (telecomunicações, petróleo, energia elétrica etc.) sob a propriedade do Estado também devem ser privatizados, como forma de garantir a acumulação privada neste momento de crise estrutural do capitalismo.

Para onde caminha o neoliberalismo?

Contudo, afirma Herrera, nada disso constitui o fundamental neste momento. O fundamental mesmo é sabermos até que ponto las finanças irão destruir os serviços públicos. Até onde vai essa lógica exterminadora. Vão destruir o planeta?

Trata-se, portanto, de avaliar se não estamos vivendo um período de grande ameaça à humanidade, na medida em que parece não haver limites para a doutrina Bush. Esta procura destruir qualquer Estado nacional que se mostre capaz de interferir na trajetória de dominação imperialista dos Estados Unidos, ou, que simplesmente procure demarcar alguma diferença com seus interesses estratégicos.

Além das relações eminentemente financeiras, questiona Herrera: em que medida os próprios monopólios farmacêuticos não constituem uma ameaça à humanidade? Até onde podem avançar as epidemias (AIDS, etc.) que hoje avassalam a África? Até que ponto os interesses das multinacionais estadunidenses (financiadoras da guerra no Iraque e no Afeganistão) levarão o terror e a guerra, que hoje se concentra no Oriente Médio, para outros territórios?

O debate nos Estados Unidos

Nos Estados Unidos não existem debates entre neoliberais e keynesianos, e muito menos dos primeiros com os marxistas. Lá, alertou Herrera, o debate é entre os neoliberais e os ultraliberais. A visão neoliberal é dominante, tem grandes reflexos nas relações capitalistas e, em nome da acumulação financeira, propõe todo um manancial de políticas de liberalização do fluxo de capitais, livre comércio, bem como de desestatização de serviços e empresas públicas. Mas, os ultraliberais interferem nas idéias dos neoliberais e querem avançar ainda mais. Querem a privatização de tudo, inclusive da polícia e do exército. O Prof. Remy Herrera chamou a platéia a imaginar a concorrência entre polícias ou entre exércitos privados, deixando no ar a questão sobre que controle social ou internacional poderia existir sobre uma situação como essa.

Para o palestrante, alguns dos mais importantes neoliberais estadunidenses (como Joseph E. Stiglitz, Paul Krugmam etc.) atacam os ultraliberais, mas existe um acordo entre eles: algumas das políticas formuladas pelos ultraliberais são muito bem aceitas por seus interlocutores, quando se trata de aplicá-las nos países do sul. Estes só não concordam em aplicá-las aos próprios Estados Unidos. Nisso não há acordo.

O resultado prático desse debate tem sido a rigidez na política externa estadunidense e de sua extensão nas agências multilaterais de financiamento. Herrera chamou atenção para o fato de que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD) dependem cada vez mais do Tesouro estadunidense para continuarem suas operações e, por isso, foi possível ao presidente Bush repetir Kennedy e indicar um ex-ministro da guerra para o Banco Mundial.

Os desafios

A dívida pública é um mecanismo de acumulação primitiva, afirma o prof. Remy Herrera. É preciso que defendamos um Estado nacional soberano, capaz de aliviar as pressões da dívida externa. É preciso que tratemos de um direito internacional que julgue a ilegitimidade de parcela considerável da dívida externa, através de uma auditoria, da mesma forma que é preciso regular o fluxo de capitais, evitando especialmente a evasão de divisas, com base na solidariedade internacional. O mesmo tratamento jurídico deve ser instaurado internamente, a cada país, para resolver os problemas causados pelo elevado volume das dívidas internas.

Outras recomendações formuladas por Herrera partiram da reflexão de que estaríamos novamente diante de um estágio pré-keynesiano. Ou seja, como aquele que existiu anterior aos anos 1930. Nessa situação, é preciso recuperar o debate das primeiras décadas do século XX e voltarmos a falar de soluções imediatas, a partir de modelos de planificação, numa contraposição aos modelos apresentados pelos ultraliberais, com vistas a um novo processo de desenvolvimento econômico e social.

Da mesma forma, devemos recuperar nossa visão estratégica do socialismo. Segundo Herrera, planificação e socialismo não são coisas arcaicas, são elementos do futuro, por isso, necessitamos pensar, necessitamos sonhar, necessitamos de utopias.

Nessa linha de argumentação, Herrera afirmou que não podemos ser refratários a algumas idéias que surgem no interior desse resgate. Como exemplo, citou a idéia de criação de uma rede de TV pública, integrada em diversos países da América Latina, como propõe Hugo Chaves, presidente da Venezuela. Da mesma forma, propôs que não podemos ser contrários à idéia de uma grande empresa petroleira latino-americana.

Para isso, insistiu o Prof. Remy Herrera, é preciso resgatar os nossos debates e rechaçar o debate imposto pelo pensamento organizado a partir dos Estados Unidos, pois, só assim caminharemos na conquista da soberania e da liberdade de nossos povos.

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