Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito “sujeito de direito” e o reino da informalidade

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

“[Nesse] campo de batalha as relações não se formam de nenhum modo dentro do espírito da definição kantiana do direito como a restrição mínima à liberdade da pessoa, indispensável à coexistência humana. Gumplowicz está completamente com a razão quando explica que tal espécie de direitos jamais existiu porque o “grau de liberdade de uns depende somente do grau de domínio dos outros. A norma de coexistência não se determina pela possibilidade da coexistência mas sim pelo domínio de uns sobre os outros”.

[…] o agravamento extraordinário da luta de classes obrigou a burguesia a desmascarar completamente o Estado de direito e a desvendar a essência do poder de Estado como a violência organizada de uma classe da sociedade sobre outras.”

PACHUKANIS

Às vésperas de mais um ano eleitoral talvez caiba prestarmos um pouco mais de atenção a algumas armadilhas espalhadas na tal arena política à brasileira. O espraiamento recente de governos extremistas à direita, em vários países, ganhou uma dimensão particular por aqui. Por trás do discurso da necessidade de ampliação das liberdades individuais, procuram legitimar a difusão da informalidade como prática social e, em muitos casos, buscam a consolidação como norma jurídica de muitos atos antes condenáveis, sob o embalo da propaganda mitificadora do “novo normal”. O problema parece se agravar, no entanto, na medida em que quem se colocou como alternativa efetiva para as Eleições de 2022, até o momento, se apresenta como paladino na defesa da retomada do “antigo normal”, deverasmente carcomido pela história, como diria o Odorico Paraguaçu, de Dias Gomes (que falta que faz um imortal desse porte, ante o atual processo de apodrecimento da ABL).

Sair desse binarismo eleitoreiro tem sido o grande desafio a ser enfrentado. Não é tarefa fácil escapar da conjuntura e pensar, como o fazem os povos orientais, olhando para a linha do horizonte, lá longe. Plasmado no lema “no longo prazo estaremos todos mortos”, o curtoprazismo keynesiano, mesmo que enrustido, ainda persiste e parece ganhar muita força, especialmente entre as lideranças populares de maior expressão. Aliás, tais dirigentes têm deixado um pouco de lado a tradição dos ensinamentos de Paulo Freire e Florestan Fernandes, privilegiando as orientações de especialistas em aplicações especulativas, surfando na onda transformista de antigos líderes do chamado Novo Sindicalismo brasileiro, em voga nos anos 1980.

Como dinossauro assumido, procuro aqui alertar mais uma vez sobre a necessidade de sair do automatismo reinante e de refletir sobre os riscos das empreitadas até então colocadas com únicas possíveis. A proposta é, pois, atentar para alguns questionamentos vinculados à hipótese de retorno ao tal “antigo normal”. Seria mesmo possível alguma reversão em favor do antigo modo de governar? Se sim, estamos mesmo preparados para retomar o caminho abandonado mesmo sob o risco de repetir os erros do passado recente? Para onde caminhávamos mesmo? Quais as consequências de elegermos algum novo/velho salvador da pátria?

Evidentemente, as respostas a essas questões não são tão triviais e, talvez, não as responderemos tão cedo. Entretanto, podemos fazer um esforço de levantar alguns elementos sobre a realidade que nos cerca, tendo em vista algum exercício no sentido de extrapolar o imediato e avaliar alguns riscos bastante prováveis de naufrágio.

Fugir da conjuntura, em busca dos fundamentos sistêmicos da realidade capitalista pode ser um recurso. Sabemos, também, que recorrer aos clássicos sempre nos ajudou a entender momentos difíceis como este que vivemos. De cara, percebemos que o combate à escalada autocrática, levantando a bandeira da necessidade de restauração do tal Estado democrático de direito, pode nos levar a rodar o toco mais uma vez, realizando desejos oportunistas imediatos, mas, sem qualquer perspectiva de um horizonte efetivamente diferente.

As experiências pós 1964 e 1988 devem ter nos ensinado o bastante sobre os limites impostos pelo lugar que as forças imperialistas nos reservaram no mundo do capital. Tanto o golpe militar, como os diversos outros golpes que sucederam à promulgação da tal Constituição Cidadã, revelaram muito das quimeras de um Estado nação subalterno, mesclado simultaneamente pela lei e pela informalidade como norma para sua reprodução sistêmica.

Estamos sob a ordem do capital. Mas, vagamos como um satélite, cuja órbita de seu movimento repetitivo, para se manter no sistema, depende das forças gravitacionais emanadas das grandes potências imperialistas, se é possível fazer alguma analogia como essa.

Temos outras referências. De um lado, é bom lembrar do que aprendemos com Pachukanis, em seu célebre “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, onde ele afirma que ao lado da generalização da forma mercadoria, desde a formação do capitalismo em escala mundial, surgiu também uma forma específica, ideologizada, mistificadora, de sujeito jurídico: o sujeito de direito, a quem se permite alguma forma de cidadania tutelada pelo alto. Isso significa que, para substituir os regimes de força precedentes às relações de produção em vigor no capitalismo, foi necessário camuflar a violência sob o véu do reinado da liberdade e da igualdade, formalizadas em lei, ou, pelo costume, dependendo da situação. Se tudo é mercadoria, inclusive a capacidade de trabalho, então, todos devem se relacionar livremente, através de contratos formais, ou informais, cada qual se dispondo a colocar nos respectivos mercados o que tem de seu para vender. Essa tem sido a retórica socialmente aceita.

De outro lado, é preciso também conceber as restrições impostas ao pleno gozo dessa cidadania consentida/tutelada nas nações herdeiras de seu próprio passado colonial, como tem sido o caso do Brasil. Por estas bandas do mundo, a permanência em alta escala de formas violentas de acumulação sempre deram oportunidade para a intensificação de relações mercantis próprias da informalidade, ora mais, ora menos intensas. Assim, a grilagem de terras, o trabalho escravo ou assemelhado, a sonegação fiscal, a evasão de divisas, a desproteção ambiental, o controle violento das populações segregadas entre outras marcas herdadas, se mantêm desde o antigo ao tal “novo normal”, distinguindo-se de intensidade apenas por uma questão de dosagem estratégica.

Se recuperarmos e aprofundarmos o debate nesse nível, talvez, a gente tenha alguma chance de conviver com toda sorte de impropérios derivados deste novo período eleitoral e, ao mesmo tempo, reacender o farol e direcioná-lo para o horizonte, atitude necessária a qualquer navegante minimante responsável, que não se deixa encantar por um canto de sereia vulgar, como tem sido o costume.

Feliz construção do ano novo!!!

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