Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A questão do comando

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Tenho dito que, entre outros desdobramentos, a chamada Guerra Fria acabou gerando um embate doutrinário, a partir do qual o rigor teórico foi convenientemente abandonado em favor de toda sorte de dogmas mitológicos, interesseiros, de parte a parte. Mais de três décadas, após o fim da União Soviética, os mitos criados naquele período de disputas ideológicas, no cinema, nos noticiários viciados e nas propagandas midiáticas, por exemplo, ainda continuam vivos e operantes, a atormentar a vida política com seus inúmeros fantasmas. Pior que isso, foi o incrível processo de deserção de parte expressiva de intelectuais das esquerdas, fomentando ainda mais o dogmatismo reinante, contribuindo para a formação de um contingente significativo de lideranças dissidentes dos conceitos teóricos essenciais sobre um processo de transformações efetivas.

Retomo, assim, o tema da luta de classes como referência para este pequeno texto, procurando dar continuidade à abordagem que iniciei anteriormente. A crise política provocada em meio à queda do Muro de Berlim fomentou várias reinterpretações, tidas como inovadoras, sobre os processos sociais mais recentes.

André Gorz talvez seja a referência revisionista que mais se destacou da virada para o novo século. Para ele, as inovações digitais estavam, a largo passo, formando a sociedade do conhecimento, na qual a generalização do trabalho em rede de código aberto (network) tornaria impossível a apropriação privada dos meios de produção, tornando inexorável o livre caminho para uma etapa pós-capitalista.

Em meio à perda da referência soviética, a perspectiva de Gorz aparecia como um alívio, na medida em que apontava para uma direção harmônica, sem rupturas radicais, em que as forças de esquerda não precisavam mais se apresentar com discursos tidos àquela época como jurássicos, ante à avalanche provocada pela expansão da ideologia sobre um suposto fim da história.

A partir daquele momento se abririam novas oportunidades. Não seria mais preciso se prender a ideias ultrapassadas, como a defesa intransigente de processos revolucionários, da necessidade de um plano estratégico para a constituição da ditadura do proletariado, pois, estaria nítido que, pensar em luta de classes, era coisa de um passado remoto, incompatível com as janelas de oportunidades abertas com o novo milênio.

Não me prenderei aqui na repercussão que essas ideias tiveram mais à direita, na criatividade de ideias tais como o fim da centralidade do trabalho e do emprego, da necessidade de formulação de inovações que dessem conta da difusão do ócio criativo e tantas outras novidades difundidas como maravilhas do mundo digitalizado.

Prefiro refletir sobre o impacto dessas abordagens no pensamento mais à esquerda. Em particular, me interessa debater sobre o abandono do rigor teórico nessas novas formulações e de como isso tem facilitado sua penetração, em larga escala, na prática política e organizativa de importantes lideranças dos movimentos populares e das entidades sindicais.

No entanto, essa não tem sido uma tarefa fácil. A adesão aos cantos de sereia do tempo novo não se expressam nitidamente. Ao contrário, na maioria das vezes, ela vêm camuflada no interior de um ecletismo muito bem articulado, para não deixar transparecer interesses enrustidos, que se escondem por trás de discursos carregados de neologismos, voltados a encantar as bases aprisionadas pela aparência dos chamados novos fenômenos sociais.

Tem sido assim, por exemplo, na reconversão do clássico debate sobre a “questão da organização”. Reacendem as fogueiras inquisitórias, supondo a necessidade de comando centralizado sobre os movimentos espontâneos de contestação da ordem, que insistem em brotar, nas aldeias, nas comunidades quilombolas e ribeirinhas, nas quebradas urbanas, continuamente atacadas, em plena consolidação do mundo novo, ou, do novo normal.

Com isso, evidenciada a mitologia do fim da luta de classes, procuram impor a ideia de que o fracasso ou o sucesso, no enfrentamento das forças sociais reacionárias, dependeria, respectivamente, do grau de despreparo ou do talento de vanguardas esclarecidas: lideranças populares, sindicais, ou, partidárias.

Suposto o talento como singularidade pessoal, cabe às massas seguir os guardiões do candeeiro. Surgem, assim, os porta-estandartes do saber, a difundir o ideário de que, se a revolução é uma construção de longo prazo, não teríamos nada mais a fazer de imediato, a não ser criar as condições mínimas de resistência, para evitar a destruição do Estado Democrático de Direito.

Ficam aqui algumas questões para darmos seguimento em um próximo texto. Seria este um recuo tático, ou uma reorientação estratégica geral, vinculada a um neopeleguismo? Estaríamos mesmo inexoravelmente aprisionados no curto prazo? Não há qualquer outra possibilidade, ou tem sido mais fácil cuidar de interesses imediatos camuflados, transferindo responsabilidades para gerações futuras?

Até!!!

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