Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

A urgência do resgate da crítica

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a chamada guerra fria tratou de escantear a análise crítica em favor do privilégio à propaganda dogmática, de lado a lado, sob orientação da pendenga entre a política de contenção comandada pelos Estados Unidos e o stalinismo soviético. Mais recentemente, o pragmatismo político se acentuou como prática militante das esquerdas partidárias, do sindicalismo e dos movimentos populares a elas vinculados, na medida em que a derrota da URSS serviu de base para toda sorte de revisionismos, tendo a inversão da realidade no pensamento mais raso como forma de legitimação das posições ocupadas por suas forças dirigentes. Na América Latina, em particular, ganhou força a expressão “es un gobierno de mierda pero es mi gobierno”, segundo a qual criticar as experiências dos mandatos progressistas levaria ao fortalecimento das mobilizações de contestação à direita. Aproveitando desse embalo de perda voluntariosa da crítica, ficou mais fácil a contenção dos movimentos sindicais e populares e, com isso, a cooptação de suas lideranças pelas forças do capital foram se consolidando a passos largos.

Exemplo da percepção desse fenômeno foi muito bem qualificada, no início do novo século, pela historiadora Virgínia Fontes, no texto “Sociedade civil, classes sociais e conversão mercantil-filantrópica”. Vale a leitura, porque se trata de um processo de longo curso e que se reproduz intensivamente no presente.

Esse abandono recente da crítica promoveu vários abalos na tradição das esquerdas em interpretar a realidade e em propor formas de lutas efetivamente emancipatórias. Tal comportamento se revela em momentos os mais variados, desde aqueles de maior confrontação direta, nas ruas, aos golpes políticos da direita ante as experiências dos governos progressistas, até aqueles das mobilizações em torno de disputas parlamentares diante das reformas neoliberais, muitas delas propostas, inclusive, pelos/as próprios/as governantes tidos como progressistas, diga-se de passagem. Em todos esses casos, sempre esteve em pauta o controle “pelo alto” sobre os movimentos de massa, contando com o apoio acrítico da ampla maioria dos dirigentes sindicais e populares.

Não se trata de apontar culpados/as, neste ou naquele partido político ou em determinados movimentos sociais. O que importa é identificar um amplo processo de generalização de uma prática política, que, por exemplo, converteu antigos e importantes dirigentes sindicais, outrora críticos da tutela do Estado e do corporativismo, em ativistas do sindicalismo de mercado, de resultados imediatos, tornando-os promotores e/ou operadores de cooperativas de crédito, de fundos de pensão complementar, participação direta nos conselhos administrativos de grandes empresas e congêneres. Essa mesma onda transformista acabou envolvendo uma ampla e diversificada leva de lideranças populares, as quais acabaram especializando suas ações militantes na produção de projetos de captação de recursos, por meio de várias ONGs, muitas vezes condicionados aos interesses das fontes financiadoras controladas pelo grande capital, inclusive, se articulando com práticas especulativas de alto risco.

Por outro lado, cabe destacar que o apego acrítico aos limites impostos pela opção das esquerdas partidárias à ação institucional e às disputas eleitorais acabou por envolver boa parte de sua militância nas práticas tradicionais das conquistas de postos em cargos públicos passíveis de indicação. Assim, o dogma da “mudança do Estado por dentro” atraiu para os gabinetes parlamentares e dos executivos, desde as esferas locais e regionais, até, os altos escalões dos respectivos governos centrais, grande volume de militantes sindicais e populares, cuja abrangência passou a alterar radicalmente o comportamento militante em diversos sentidos.

Não cabe aqui entrar em detalhes, mas, não é segredo que a generalização dessas novas abordagens acabou envolvendo parcela significativa da militância sindical e popular em práticas pouco formais, tradicionalmente utilizadas pelas forças conservadoras no financiamento das campanhas eleitorais e no enriquecimento ilícito, tornando-a alvo privilegiado das denúncias seletivas, muitas vezes abusivas, de corrupção por membros das instâncias judiciais e de fiscalização controladas pelo conservadorismo reinante. O importante a considerar e a questionar no atual contexto é em que medida a generalização do dogmatismo acrítico e do comportamento pragmático de ocupação de cargos eletivos e de indicação, como tem sido observado, é compatível com a urgência em se criar alguma capacidade de enfrentamento efetivo às forças conservadoras; que ampliaram seus tentáculos institucionais em várias esferas públicas, mas, também, na vida cotidiana das pessoas, sem a contraposição de grandes movimentos de resistência até aqui.

Sair do automático e inverter o dogmatismo pragmático construído nas últimas décadas, que tem se pautado na promoção de rotinas irreflexivas, tem sido o principal desafio para quebrar o condicionamento ao individualismo espontâneo e à acomodação às saídas imediatistas. Resgatar a capacidade de reflexão coletiva, para além dos dogmas, da propaganda sem conteúdo objetivo, requer a construção do ser humano novo, livre e solidário, conforme nos ensina quem ainda resiste às formas violentas de acumulação, que se proliferam neste momento de grave crise sistêmica do capital, nas favelas e nas comunidades tradicionais. São famílias de diversos formatos, cujas lutas são invisibilizadas pelo comportamento pragmático, enquanto enfrentam sozinhas, desamparadas, as tentativas de expulsão violenta de seus territórios, nessa nova onda de grilagem de terras urbanas, do que resta de florestas naturais, dos rios e das pequenas glebas ocupadas com a produção familiar.

Os desafios se mostram muito além das propostas de simples troca de governantes usualmente colocadas como solução imediata. Pensemos no longo prazo e tracemos nossos planos, pois, quem comanda efetivamente o grande capital e que a tudo busca controlar, tem dado sinais de que pode fugir para seus bunkers, abandonando o mundo à barbárie que a ganância proprietária construiu.

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