Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito do Estado contra o mercado

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Insistem em dizer, analistas da mídia proprietária, que um espectro ronda o Brasil após as eleições de 2022: as ameaças do mercado. Tive a oportunidade de afirmar numa publicação de 2010 que, apesar de aparecer nos noticiários como um ente misterioso, onipotente, capaz de impor suas vontades, o tal mercado nada mais é que um conjunto muito restrito de pessoas, de carne e osso, mas, que se distingue de todos os outros pelo poder de comando sobre o destino da riqueza produzida na sociedade. Muitas das formas como essas personalidades se tornaram tão poderosas são deveras impublicáveis, devido as dificuldades que temos em retratar fielmente tamanha violência e desumanidade. Porém, não podemos esquecer que a força necessária para isso não nasceu como algo natural e não caiu tal qual uma chuva de manás nas mãos de quem estaria predestinado a dominar. Foi conquistada por meio de longos séculos de disputas territoriais violentas, colocadas em marcha por iniciativa de uma classe social, que se moveu para se tornar poder dominante em todo o mundo. Me deterei aqui em tentar mostrar apenas algumas notas sobre esse tema.

De início, é preciso perceber que essa entidade mercantil migra tranquilamente de modus operandi de acordo com as circunstâncias, passando a seu bel-prazer da sutileza das artimanhas do balcão de negócios à brutalidade explícita da acumulação violenta. Os socialistas utópicos do século XIX acreditavam na possibilidade de praticar o preço justo. Existem também outras crendices semelhantes, em torno do uso do dinheiro como mera unidade de conta, no entanto, em se tratando de mercados capitalistas, vale lembrar um trecho bem batido sobre o que nos ensina Marx: “Se o dinheiro, segundo Augier, ‘vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces’, o capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.

Uma vez convertido em capital, não importa se o dinheiro seja usado na compra de meios para produzir pães ou armas. O objetivo será sempre a apropriação individual de parcelas cada vez maiores da riqueza social produzida e, para isso, tudo vale, inclusive, o uso da brutalidade, na exploração do trabalho alheio, na concorrência interna ao comando, ou, na destruição da natureza.

Até algum tempo, a ideologia dominante conseguia difundir a crença de que o uso da força bruta seria coisa do passado. Porém com o aprofundamento das crises, em nível mundial, tem sido difícil esconder que o tal poder de mercado vem impondo, com maior frequência e rigor, relações bem próximas daquelas que predominaram no período mercantilista. Cada vez mais resgatam-se elementos de um momento histórico fundamental para a emergência dos mercados capitalistas, em que eram tidos como normais tanto a escravização de povos tradicionais nas colônias, o uso da violência nas disputas pelo controle de terras e do comércio, como também o tráfico de pessoas, de armas, de drogas e toda modalidade de pilhagem, de pirataria e genocídio.

É possível perceber, ante às crises estruturais em curso, que ao lado do esforço secular para consolidar toda uma normalização jurídica com base em contratos mercantis, permaneceu tacitamente operante toda sorte de acumulação violenta, com as adaptações exigidas pela modernização capitalista.

No caso particular do Brasil, é possível observar que essas relações nem sempre ficaram tão ocultas assim. Ao lado da mercantilização das terras, por exemplo, se desenvolveram todas as formas de grilagem que, agora, apenas se revelam mais intensas e violentas, no campo e, inclusive, no meio urbano, combinando o desmatamento, a degradação ecológica mais geral e o genocídio praticado por forças paramilitares, mas, também, por intervenção violenta do Estado.

Assim, emergiram durante os últimos 5 séculos por aqui, muito mais que um Estado garantidor da exploração, a partir de normas de conduta e de direito fundamentadas na inviolabilidade da propriedade privada dos meios de produção. Ao lado de todas as promessas de modernização, formam se constituindo os aparatos jurídicos, políticos e ideológicos adequados à conservação da informalidade, da acumulação violenta, operada por modernos jagunços, traficantes e milicianos, no interior das relações de mercado.

As experiências recentes evidenciam que as grandes operações mercantis se desenvolvem como uma rede combinada de várias interfaces. Não existem, como querem alguns keynesianos, o capital produtivo, bonzinho, de um lado e, de outro, os rentistas, sonegadores de impostos, contrabandistas de toda ordem. A integração dos mercados sempre foi um pressuposto para a existência do capitalismo em nível mundial, inclusive, aqueles considerados informais.

Além disso, o Estado não é apenas um grande regulador das transações privadas, dentro das normas legais, da publicidade e da impessoalidade. Ele atua como um importante operador no interior dos mercados, pois, promove investimentos diretos, demanda uma série de mercadorias e serviços para manter a máquina pública funcionando, financia boa parte dos investimentos privados e, o mais relevante, atua como emissor de títulos da dívida pública, os quais constituem a base para todo tipo de apostas especulativas.

As escolhas políticas refletem as relações de poder que se desenvolvem no seio da sociedade. Não existe um Estado que paira acima de todos nós, isento, com o objetivo de gerir o bem-estar social indistinto. Muito ao contrário, as representações que assumem cargos públicos, ou cuidam dos interesses dominantes, ou serão deslocadas de tais posições, não é lógico?

Então, as nossas dificuldades não residem na escolha por dirigentes mais competentes, mais justos etc. e, sim, em construir novas relações de poder no interior das forças vivas da sociedade. Parece que não basta contrapormos mais Estado ao estágio atual das poderosas forças do mercado, pelo menos se levarmos em conta as experiências europeias de bem-estar, destruídas pelas crises contemporâneas.

Durante algumas décadas, antes do agravamento das crises estruturais que abalam o mundo, fomos embalados pelos sonhos da necessidade de mais Estado. Após a reconstrução dos países destruídos pelas duas guerras mundiais do século XX, os chamados anos dourados do consenso keynesiano deram lugar à mais longa depressão econômica da história, com consequências dramáticas que agora ameaçam a vida no planeta. O remédio que aparecia como única solução para salvar o capitalismo de suas terríveis crises foi abandonado em favor do jogo livre, violento, das forças predadoras dos mercados.

Nos ensina o “bom velhinho”, que não faz sentido nos apossarmos da máquina do Estado tal como ela existe e nela promovermos alguns ajustes. É preciso esmagá-la, destruí-la! Isso só é possível num longo e escruciante processo de destruição das relações estruturais baseadas na exploração, que possa se estender até a emergência de um efetivo poder popular, capaz de criar as condições objetivas e subjetivas para o definhamento das próprias relações de poder criadas pelo levante social de partida.

Por sua vez, Lord Keynes dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos, de onde é possível deduzir que a tarefa imediata seria buscar as salvaguardas do Estado, como garantia para a acumulação sem grandes traumas.

As encruzilhadas estarão sempre abertas para nossas decisões ante a um leque de opções históricas. Marx, nos anos 1840, defendia que as classes trabalhadoras de todo o mundo se unissem em torno de um plano rumo à emancipação humana. Keynes, em 1925, afirmava que poderia ser influenciado pelo que lhe parecia ser a justiça e o bom senso, mas, a luta de classes o encontraria ao lado da burguesia ilustrada.

Boas reflexões, boas escolhas!!!

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