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Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Dois estágios dos conflitos bélicos permanentes

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

O período pós-guerras inaugurou uma etapa de consolidação e de crises sucessivas do controle dos Estados Unidos sobre a acumulação capitalista em nível mundial. Num primeiro momento, como consequência dos erros táticos no avanço vacilante das tropas estadunidenses no final da Segunda Guerra, a União Soviética pode ocupar territórios avançados na Europa e passou a influenciar ainda mais os destinos de várias nações em todo o mundo. Tratou-se, portanto, de um momento em que a política externa de contenção, comandada a partir de Washington, deu o tom da chamada Guerra Fria, em pleno processo de reconstrução física e geopolítica das nações destruídas até 1945. Mais adiante, a partir do final dos anos 1960, a crise mundial de superprodução de capital se desdobrou em diversas outras crises, colocando sob ameaça o poder dos grandes conglomerados organizados a partir dos Estados Unidos e, também, desestabilizando sua capacidade de manter a imposição do dólar como moeda mundial.

A proposta deste pequeno texto é, portanto, tratar desse período em dois tempos. De um lado, há o momento da reconstrução, em plena política de contenção do poder expansivo das ideias socialistas. Depois, há o processo da competição, ou seja, do acirramento da concorrência entre os distintos conglomerados sediados nas grandes potências imperialistas, manifesto na grande corrida tecnológica, que acabou gerando a crise de superacumulação e outra grande depressão, que se estende até as primeiras décadas do século XXI.

O que tem em comum entre essas duas etapas, a primeira, de contenção, a segunda, de distensão, tem sido o modus operandi dos Estados Unidos em propor, impor e controlar ambas as relações, a partir de uma contínua ameaça militar, com demonstrações de força bruta em vários momentos de intervenção bélica direta em várias nações, dando sequência ao estado de guerra em permanência.

Não custa lembrar que a decisão de lançar duas bombas atômicas sobre o Japão, em agosto de 1945, deu início à política de contenção da doutrina Truman e de demonstração de poder ao mundo, pois, ocorreu após diversos alertas do comando das forças militares estadunidenses no Pacífico, de que aquele seria um ato desnecessário ante ao estágio iminente da rendição nipônica.

Os acordos de Bretton Woods

No final da Segunda Grande Guerra, a partir de 1944, o domínio do capital organizado a partir dos Estados Unidos se colocava como a única forma viável para a retomada das relações de mercado em nível mundial. Iniciava, assim, a nova era de realização da doutrina do dólar forte, como moeda mundial conversível em ouro.

Os acordos internacionais firmados na cidade de Bretton Woods (EUA) exigia, de um lado, certa rigidez na conversibilidade e na cotação das demais moedas em relação ao dólar. Para assegurar o cumprimento desse regime de paridade cambial fixa, foi criado naquele momento o Fundo Monetário Internacional (FMI), formado a partir de depósitos de parte das reservas em dólar dos países membros, com o objetivo de socorrer, com empréstimos, governos com alguma dificuldade momentânea de honrar os compromissos externos em dólar. O objetivo era nítido: evitar ameaças de melar todo o modelo pactuado após as imposições de Washington.

Nessa mesma linha, foram sendo criadas outras agências multilaterais de regulação do comércio (GATT) e dos fluxos de crédito em nível intrernacional. Entre estas agências, se destacou a fundação do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), também conhecido como Banco Mundial, base naquele momento para financiar os investimentos previstos para o Plano Marshal, de recuperação dos países destruídos pela Segunda Guerra e, também, para reestruturar a nova divisão internacional do trabalho, envolvendo a integração industrial de algumas nações subdesenvolvidas.

Não era à toa que essas agências multilaterais foram instituídas com sede nos Estados Unidos. A cada novo acordo internacional de investimento direto e de empréstimos passou a corresponder o alinhamento à política externa conduzida por Washington rumo à consolidação do antigo projeto de dominação total.

Os grandes conglomerados sediados nos Estados Unidos passaram, desde então, a criar filiais em vários países, especialmente na Europa e no Japão, com intuito de realizar os pesados investimentos requeridos para reerguer as economias devastadas pela guerra. Enquanto durou a reconstrução, a Europa (incluindo a Alemanha Ocidental e a Itália) e o Japão eram os principais destinos das exportações estadunidenses de máquinas, equipamentos, insumos e meios de consumo que ainda não tinham condições de ser produzidos por lá.

O que isso significava na prática? Como moeda mundial, os dólares emitidos que se encaminhavam para o exterior, na forma de empréstimos e de investimentos diretos dos grandes conglomerados, acabavam retornando para os Estados Unidos como contrapartida das exportações e o circuito se fechava.

Assim foram montadas as condições para a realização dos chamados “Anos Dourados” do capitalismo. Cabe aqui destacar que reconstruir a Europa requeria a incorporação de uma grande massa de homens e mulheres nos novos processos de trabalho, em sua grande maioria, pessoas que perderam muito e foram treinadas para enfrentar os desafios da guerra. Portanto, essas pessoas não se dispunham a participar da reconstrução com um sacrifício adicional. Então o capital não teve escolha a não ser fazer concessões, aceitando ser tributado, para financiar a montagem do Estado de Bem-Estar Social europeu, que funcionou plenamente até o acirramento das crises atuais.

A política de contenção em processo

Há um vídeo, bastante interessante, sobre como o povo chinês conseguiu resistir e expulsar os japoneses com a ajuda de vários países. O interessante está, também, na autoria: o Departamento de Guerra dos Estados Unidos. Tem sido uma ilustração perfeita de como se fazia propaganda na chamada Guerra Fria, especialmente, porque em nenhum momento o filme se refere à importância do Partido Comunista Chinês, seja na organização da resistência, ou, nas iniciativas de mobilização daquela população rural gigantesca, naquele processo.

Quatro anos após o final da Segunda Guerra Mundial o mundo ficaria sabendo de uma espetacular revolta popular que colocaria para correr uma ala expressiva das elites compradoras da China para Taiwan e, também, voltaram para casa vários executivos de empresas estrangeiras que operavam ali há mais de um século, de contínuas guerras, desde a primeira Guerra do Ópio com a Inglaterra.

A revolução Chinesa, consolidada a partir de janeiro de 1949, sinalizava para várias nações essa possibilidade. Os Estados Unidos passaram rapidamente, de primeiro aliado na expulsão dos japoneses, a declarar a China como inimiga fundamental, devido ao espraiamento de processos revolucionários no Sudeste Asiático naquele momento.

Não deve ter sido mera coincidência, a aliança militar que deu origem à Organização do Tratado do Atlântico Norte, em abril de 1949, abrindo a oportunidade para a instalação, mais adiante, de várias bases militares dos Estados Unidos na Europa, com seu mísseis apontados para o Leste, quando ficava cada vez mais nítida a influência externa da União Soviética.

Sem conseguir conter os avanços e a consolidação dos projetos das lideranças do Exército de Libertação Popular da China, os Estados Unidos trataram de se ocupar de outras frente no Pacífico, com o objetivo de evitar que outras revoluções obtivessem sucessos semelhantes. A Coreia foi a primeira na lista do Tio Sam, na defesa dos seus interesses, uma vez que, após os tratados de Yalta e Potsdam, de 1945, ficaram estabelecidos os limites ente as Coreias que, após a guerra, foram divididas entre o território socialista, ao norte, e o capitalista, ao sul. A Guerra da Coreia se estendeu de 1950 a 1953 e acabou mantendo a divisão. Na sequência, os conflitos se deslocaram mais para o Sul da Ásia, especialmente a partir de 1955, quando iniciaram as primeiras batalhas da Guerra do Vietnã, envolvendo ainda Formosa e o Camboja. Essa guerra se estenderia até 1975, quando as tropas dos Estados Unidos foram definitivamente derrotadas.

Ainda nos anos 1950, mas, do outro lado do mundo, surgiam novas oportunidades para os Estados Unidos demonstrar seu poder de desestabilização política de governos progressistas eleitos e, especialmente, apresentar seu arsenal bélico em ação. Foi assim na Guatemala, em 1954, mas, também em outros países, criando uma sequência de intervenções externas das tropas do Tio Sam. Tais movimentos, ocorreram paralelamente à consolidação dos acordos de cooperação mútua entre as nações do Bloco Socialista, que resultaram na fundação da Organização do Tratado de Varsóvia, ou, como ficou mais conhecido, do Pacto de Varsóvia, em resposta à entrada da Alemanha Ocidental na OTAN, em 1955.

A correlação de forças entre os dois blocos desafiava a capacidade de extensão da Guerra Fria, cuja sustentação política e ideológica se assentava muito mais na ameaça de uma guerra nuclear, de lado a lado, criando um cenário internacional privilegiado para o espraiamento de toda sorte de medo e dogmatismo em torno dos dois projetos em contenda.

Por isso, na Revolução Cubana de 1959, novamente a maior potência nuclear do planeta não conseguiu conter, suficientemente, os projetos revolucionários, mesmo com todo o esforço militar e de propaganda ideológica colocado em ação. A Batalha de Girón, em 1961, foi um verdadeiro fracasso, pois, após três dias de conflito, as forças revolucionárias cubanas conseguiram destruir os planos de assassinato de Fidel Castro e demais lideranças. Este seria o objetivo primordial dos batalhões formados por cubanos insatisfeitos, que fugiram para os Estados Unidos, onde foram treinados pela CIA, para executar a Operação Mangusto, com apoio e comando das tropas estadunidenses.

Com o avanço da revolução, Cuba pode contar com um apoio maior do Bloco Socialista, uma vez que suas operações internacionais sofriam vários boicotes ocidentais, a partir da política de bloqueio comandada desde Washington. A tensão aumentou no final de 1962, quando os Estados Unidos descobriram um projeto de instalação de bases soviéticas em solo cubano, gerando a chamada Crise dos Mísseis. Vários acordos se sucederam a este episódio geopolítico, entre as duas potências, enquanto o mundo era abalado por uma nova onda de ameaças, sobre mais aquele estopim, que poderia, enfim, levar à guerra nuclear.

Enquanto a chamada terceira guerra não se realizava, esses momentos de tensão midiática criavam oportunidades para a legitimação, de um lado, do acirramento da política externa de contenção do capital organizado a partir dos Estados Unidos, o que implicava, inclusive, fomentar novos golpes militares na América Latina, como o golpe de 1964 aqui no Brasil, antes que a revolução cubana servisse de motivação para novas incursões semelhantes.

Por seu turno aquela tensão dogmatizada também legitimava cada aumento dos gastos militares pelos países membros da OTAN. Armas cada vez mais sofisticadas eram desenvolvidas, num ambiente de fantásticas inovações tecnológicas, embaladas, inclusive, pela chamada corrida espacial entre os Estados Unidos e a União Soviética. A elevação das despesas públicas com todo o arsenal de guerra construído, desde então, passou a ser um dos principais impulsionadores das cadeias produtivas dos grandes conglomerados econômicos privados que, operavam em vários ramos, mas, também, abasteciam as demandas militares das grandes potências. Isso ocorria num momento em que a economia mundial começava a dar sinais da chegada de mais uma longa crise de superprodução de capital e, para impulsioná-la continuamente a partir da indústria bélica, seus produtos precisam ser usados, consumidos de fato, não é mesmo?

O abalo da concorrência entre titãs

Os acordos de Bretton Woods previam um longo percurso de reconstrução após a Segunda Guerra. Porém, por mais extenso que tenha sido, ele chegou ao fim, na segunda metade dos anos 1960. Depois de restabelecidas as condições para a retomada da produção, as economias destruídas pela guerra se tornaram autossuficientes e, com isso, os dólares que migravam para a Europa e para o Japão deixaram de retornar para os Estados Unidos, na mesma magnitude que antes retornava, se acumulando no exterior. Boa parte desses recursos não podiam ficar simplesmente entesourados, então, passaram a ser reciclados, principalmente a partir de empréstimos, nos mercados de eurodólares, formados com a fusão de bancos estadunidenses com as unidades de capital organizadas na Europa.

Além disso, é preciso atentar para o fato de que as grandes empresas não tomam decisão de novos investimento pensando em utilizar a mesma base tecnológica dos investimentos anteriores. Este é sempre o momento de sair na frente e se diferenciar das concorrentes, ganhando a capacidade de se apropriar de uma parcela maior da riqueza global criada em cada ramo produtivo, pois, inovando, consegue produzir com valor menor que aquele praticado nos respectivos mercados, embolsando a diferença. Isso é possível porque há uma transferência de valor das unidades com menor produtividade para aquelas com maior produtividade do trabalho.

Assim, as filiais que migraram dos Estados Unidos para a Europa e o Japão, ao se associarem ao capital daqueles países, passaram a operar num padrão tecnológico muito mais avançado do que aquele em uso nas respectivas matrizes. Portanto, nos anos 1960, as grandes potências europeias e o Japão já haviam reconstruído seus parques produtivos, porém, em condições de competição internacional muito mais vantajosas que a produção industrial das unidades instaladas nos Estados Unidos. Como não poderia deixar de ser, dentro da ordem do capital, aquela discrepância concorrencial levou à abertura de uma intensa e acirrada disputa pelas pesquisas e pelas quebras dos segredos industriais, expandindo ainda mais a incorporação de inovações entre os grandes conglomerados empresariais, difundindo as novas técnicas e elevando a produtividade do trabalho.

Batata! Muito investimento em novas máquinas e equipamentos sofisticados, em relação à quantidade de trabalho empregada, levaram à crise de superprodução de capital, no final dos anos 1960.

Tal movimento brusco, de inversão da euforia do período da reconstrução, coincidia com uma demonstração mais nítida de que os projetos da União Soviética estavam entrando em colapso. Uma profunda crise política e militar com a China, explicitada naquele momento, era um forte sinal de problemas na manutenção do Bloco Socialista sob o controle soviético. Com isso, começou a fervilhar na Europa e no Japão a ideia de que os pactos de reconstrução e de proteção, formalizados com os Estados Unidos, já não faziam mais sentido, uma vez que o tal “perigo vermelho” já não se apresentava como antes.

Especialmente a Alemanha, a França e o Japão iniciaram um movimento de contestação do poder internacional dos Estados Unidos. A ideia era convencer o mundo de que se esgotaram a capacidade e a orientação política anterior, do capital organizado na pátria do Tio Sam, em resolver a crise que se acelerava e em manter a regulação das relações internacionais dentro dos pactos formalizados em 1944.

A forma escolhida como a mais eficaz para demonstrar essa tese, pelas potências imperialistas reconstruídas após a guerra, foi desacreditar o dólar como moeda mundial. A tática foi trocar grande parte das respectivas reservas cambiais, em dólares, na compra de ouro, mas, o impacto imediato dessa abordagem levou a uma reação brusca do governo estadunidense. O presidente Nixon, mergulhado politicamente numa imensa crise, acusado de corrupção e sob pressão para acabar com as incursões militares no Vietnã, procurou demonstrar que não estava morto.

Assim narra Perry Anderson o episódio, na página 86, do livro A política externa norte-americana e seus teóricos: “Sem perder tempo com consultas diplomáticas, em um discurso na televisão de quatro minutos para um público doméstico, ele descartou o sistema de Bretton Woods, cortando a ligação do dólar com o ouro”.

Seria de se imaginar que isso significaria o fim do mundo, não é mesmo? Depois de 25 anos de paridade fixa de câmbio, entre o dólar e as demais moedas, o representante mor do Tio Sam propôs, de uma hora para outra, acabar com todo o acordo, mostrar que vinham emitindo dólar sem lastro em ouro e, por fim, reafirmar que não abririam mão de sua moeda como dinheiro mundial e pronto.

O mundo não acabou. Dali em diante, uma nova fase do capitalismo foi inaugurada. Era o momento da desregulação total das taxas de câmbio e de generalização da emissão de papel-moeda não conversível, gerando o mundo da instabilidade que vivemos até hoje. O mundo da especulação parasitária, com as oscilações descontroladas nas cotações das bolsas de valores, nas bolsas de mercadorias e nos mercados de títulos derivativos. O domínio sobre todas as decisões públicas e privadas passava a ser ditado pelas apostas sobre preços no futuro.

As decisões econômicas, geopolíticas e militares passaram a ser subordinadas a uma lógica de reprodução dos circuitos da riqueza fictícia. Isso não significa que a produção de riqueza real, de máquinas, equipamentos, matérias-primas e meios de consumo deixaram de ser relevantes, apenas que o centro das decisões deixou de se localizar na esfera da produção e se deslocou para a esfera da especulação, ainda mais predatória.

Nesse novo mundo do capital em crise, os gastos militares dos Estados nacionais não apenas passaram a estimular a produção e o consumo de armas e munição. Uma vez que são financiados em volume crescente por dívida pública, eles passaram a se constituir numa base fundamental na reprodução de riqueza especulativa, fictícia. Os títulos de dívida pública são as principais alavancas da especulação, não pelos juros e encargos que os governos pagam, ou, renegociam, mas, sim, por servirem de lastro para apostas especulativas de auto risco. Isso passou a marcar um conteúdo ainda mais desesperador para a legitimação das guerras permanentes a partir da grande crise, iniciada no final dos anos 1960.

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