Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O Socialismo em debate no séc. XXI

Helder Gomes

O debate econômico que presenciei no Fórum de Caracas esteve em total consonância com a perspectiva de unificação das lutas anticapitalistas em todo o mundo. Tanto nas mesas multidisciplinares quanto naquelas mais específicas, que reuniram apenas economistas, a pauta econômica esteve sempre vinculada ao debate político, de como traçar alternativas ao neoliberalismo e de como ampliar a resistência internacional ao imperialismo, a partir da integração dos países do Hemisfério Sul. Dessa forma, pude observar que as propostas divulgadas amplamente pelos venezuelanos, inclusive pelo presidente Hugo Cháves, de uma nova organização do trabalho e da imprescindível necessidade de integração dos países latino-americanos e do Caribe, rumo ao “Socialismo do Século XXI”, apareceram diversas vezes no debate entre economistas. Essa me pareceu uma relação interessante, porque assim o discurso político encontrou uma importante oportunidade de maior reflexão sobre essas e outras propostas programáticas, possibilitando que se apontassem seus efetivos potencias de realização, mas, também, uma gama de críticas as suas limitações estratégicas.

Este artigo procura retratar um dos debates econômicos que tive oportunidade de acompanhar no Fórum de Caracas, a partir de minha síntese particular, o que certamente isenta os palestrantes citados das possíveis falhas de interpretação que eu tenha cometido.

A SEPLA chegou ao FSM

Criada em outubro do ano passado, a Sociedade Latino-Americana de Economia Política e Pensamento Crítico (SEPLA) esteve presente no Fórum com duas mesas de debates. Tratarei aqui do tema da primeira mesa, “Propostas econômicas alternativas ao neoliberalismo: construindo um novo amanhã na América Latina”, deixando o tema sobre os governos de Lula e de Kirchnner para outra oportunidade.

Antonio Elias (Uruguai) iniciou as discussões, afirmando que a transformação social exigida hoje passa por alterações em cada um dos elementos constitutivos do neoliberalismo, num processo de transição. Para este economista, a construção desse processo de transição pressupõe uma interpretação mais cuidadosa do momento histórico que vivemos. Por exemplo, disse, não podemos afirmar que o neoliberalismo tenha fracassado, porque foi promovido para isso mesmo (ou seja, para realizar as privatizações, a desregulação dos fluxos de capital, a quebra de algumas barreiras comerciais etc.). Segundo Elias, o que fracassou foi o discurso neoliberal, que pregava soluções para os problemas estruturais do capitalismo.

Mais adiante Elias recuperou o debate político que tomou conta do Fórum de Caracas para suas reflexões. Para ele as proposições do “Socialismo do Século XXI” e da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) são idéias-força, que devem orientar as formulações de políticas alternativas para o continente, contudo, precisam de formulações mais precisas para sua concretização. De um lado, afirmou que a integração latino-americana deve passar pela complementaridade produtiva entre as diferentes economias nacionais. De outro lado, colocou o dedo na ferida, ao se contrapor a proposta de um socialismo sem a presença determinante do Estado, destacando que não se trata de defender o “estatismo”, mas, de interpretar a necessidade de um Estado forte, como instrumento de viabilização dos interesses populares, pois, a política é o instrumento fundamental.

O Economista Gérard Duménil (França) deu seqüência ao debate e de sua fala colhi alguns elementos interessantes para este registro. Logo no início, Duménil reafirmou a escolha do referencial teórico marxista como fonte para as interpretações de nossa realidade, dizendo que as perspectivas keinesianas convencionais são desprovidas de visão política e que, por isso, são inadequadas, por não explicitarem as contradições de classe em suas análises. Dito isso, provocou o debate, criticando o discurso da impossibilidade de gestão de políticas públicas pelos governos de esquerda e, por outro lado, apontou os desafios de se construir alternativas diante da diversidade de interesses e das formas diferenciadas de interpretação e de formulação de propostas de integração anti-imperialista: “há vários níveis de utopia”.

Para Duménil, as diferenças de interesses não podem impedir a união dos países latino-americanos frente à concorrência mundial. Segundo sua concepção, é preciso formular uma alternativa de integração que promova a liberdade comercial entre os países da América Latina, capaz de fazer frente à liberalização comercial imposta em escala mundial. Para isso, afirma Duménil, aspectos políticos importantes devem ser levados em conta no processo de integração latino-americana, especialmente, no que refere a valorização de cada passo adiante que cada país possa promover ou esteja promovendo nesse sentido, criando uma solidariedade regional. Com isso, gradualmente, cada país pode avançar, ou pelo menos dar passos semelhantes àqueles já experimentados em sua vizinhança, no sentido da integração e da resistência às imposições dos Estados Unidos. O controle do câmbio, por exemplo, ataca o coração do neoliberalismo e não significa nenhuma revolução, mas é um passo importante a ser valorizado.

Politizando ainda mais o debate, Duménil propôs a necessidade de uma “deslavagem” cerebral em relação ao neoliberalismo e a retomada da organização dos diversos movimentos sociais. Afirmou que a América Latina é a raiz da resistência por ter sido a primeira vítima do neoliberalismo e que, portanto, têm-se a esperança de que sairão daqui as formas de como fazer a emancipação, a partir da sua comprovada capacidade de mobilização popular.

Na seqüência, Wim Dierckxsens (Costa Rica) fez uma exposição ainda mais provocante para o debate. Sua linha de abordagem foi interpretar as formas de intervenção dos Estados Unidos e suas motivações, a partir do diagnóstico de que o resto do mundo subsidia os Estados Unidos na atualidade, sendo este um sintoma de sua supremacia econômica e militar. Qualquer ameaça a essa dominação, afirmou, tem sido respondida com muita agressão, como no caso dos ataques bélicos ao Iraque e as pressões sobre o Irã, países incitados a trocar o dólar pelo euro em suas transações internacionais.

Dierckxsens alertou que essas iniciativas dos Estados Unidos podem levar a uma crise bélica sistêmica. Comentou a manipulação da opinião pública pela propaganda estadunidense, que atualmente apresenta o Irã como uma ameaça para o mundo, enquanto esconde a preparação de Israel com ogivas nucleares, exatamente para atacar o Irã. O pior, como no caso do Iraque, não existe qualquer evidência de que o Irã esteja efetivamente produzindo a bomba atômica. Contudo, concluiu, se esses ataques bélicos são necessários é porque o sistema está mesmo em crise profunda, especialmente no que se refere à ameaça à hegemonia dos Estados Unidos.

A expansão dos conflitos bélicos é um risco iminente. Novos ataques ao Oriente Médio, em especial sobre o Irã, significariam impedir o abastecimento de petróleo à China, por exemplo, o que poderia aprofundar e expandir os ataques bélicos em escala internacional, inclusive para outras regiões do planeta. Por isso, afirma Dierckxsens, correr esse risco é um sintoma da crise sistêmica que se aproxima.

Outros sintomas dessa crise estrutural que ameaça a hegemonia estadunidense seriam, segundo Dierckxsens, o crescimento da especulação imobiliária nos Estados Unidos e a elevação das taxas de juros pelo FED (Banco Central dos EUA). Chama a atenção de que essa desvinculação do rentismo da dinâmica econômica é um sintoma importante da crise estrutural do capitalismo na atualidade.

Por outro lado, observa Dierckxsens, este pode ser um momento interessante de ascensão do movimento social. Pela experiência histórica, as revoluções aparecem em situações como essa. Mas, se é verdade que existe essa possibilidade de refortalecimento dos movimentos sociais de massa, é preciso ter nítido que essa lógica da acumulação capitalista, mesmo em crise, não termina sem que se chegue às últimas conseqüências, vaticinou.

A proposta do Socialismo do Século XXI

Após as provocações da plenária os palestrantes retomaram com posições mais precisas sobre as principais referências em debate na Venezuela: o socialismo organizado a partir da autogestão e a possibilidade de outras formas de organização social pós-capitalismo. Antonio Elias defendeu a importância do cooperativismo, entretanto, alertou que este não pode ser confundido com socialismo. Como podemos imaginar a organização de uma empresa estratégica como a PEDEVESA (petroleira estatal venezuelana), por exemplo, como uma cooperativa? Perguntou. Novamente, reafirmou que no socialismo o Estado deve ser forte, mas, também, deve ser controlado socialmente. E completou: todo processo de fomento ao cooperativismo é muito importante inclusive para a construção de alternativas, porém, deve ser entendido apenas como parte da construção do socialismo.

Numa linha de abordagem semelhante Gérard Duménil defendeu que a proposta de unificação bolivariana é perfeita, pois, mesmo que não sejam políticas revolucionárias, as iniciativas de cooperação são educativas do ponto de vista da solidariedade, um valor imprescindível ao socialismo. Contudo, afirmou Duménil, é essencial que haja uma alteração radical no controle dos meios de produção, em contraposição à propriedade privada. Dessa forma, o problema estaria na “grande economia”, pois, o movimento de base (das cooperativas, por exemplo) não dá conta de questões estratégicas, como o controle sobre a produção de petróleo, sobre a moeda etc. “Lógico que não precisa estatizar tudo”. Para Duménil, o fundamental é dar segmento ao processo histórico de luta de classe, no sentido da transformação, com avanços e derrotas, como foi com a resistência ao neoliberalismo.

Respondendo à Leda Paulani (Brasil), que fez um comentário sobre um debate ocorrido no dia anterior, no qual Atílio Borón (Argentina) tratou da existência de novos sujeitos emancipadores (feministas, ecologistas, etc.) e Ana Ester Ceceña (México) chegou a afirmar que o socialismo não é a única utopia e que devemos nos abrir a novas possibilidades, Duménil foi taxativo. Para ele, algumas experiências socialistas não fracassaram por não terem acumulado as lutas ecológicas e as lutas de emancipação de gênero, mas, por não terem sido exitosas em organizar os interesses das bases sociais, na conservação do poder de contestação. Por isso, permitiram que o neoliberalismo reconstruísse o capitalismo com muito mais força e violência. Por fim, afirmou, avançar na mundialização da luta das bases sociais significa multiplicar o poder popular.

Wim Dierckxsens seguiu com o debate afirmando que o fracasso do socialismo real se deu por não socializarem a economia na mesma dimensão da evolução da corrida militar armamentista. Nessa linha, argumentou que este é um processo muito complexo e citou o caso da Venezuela que, segundo ele, passa por um processo de desconstrução da proposta neoliberal, mas, o ambiente hostil impõe um processo de proteção militar. Quanto às “novas” formas de organização da produção, Dierckxsens concorda com os demais palestrantes, afirmando que a ecologia é fundamental, pela importância de se tratar dos limites naturais dos recursos da terra. Mas, alertou que o cooperativismo já foi muito neoliberal. Para ele, a solidariedade cooperativista pode resgatar a perspectiva de alternativas de organização social e, inclusive, os exemplos de iniciativas cooperadas, no nível micro, podem contribuir para mudanças significativas no nível macro.

Conclusão

Foi sem dúvida uma experiência bastante proveitosa esse debate preparado pela SEPLA. Se, de um lado, explicitou questões de caráter estratégico, fundamentais para o entendimento deste momento histórico, de outro lado, reafirmou a importância da pesquisa e da elaboração na Economia Política, como contribuição para o avanço de ações concretas no sentido da transformação social. O FSM continua e a América Latina pode agora contar com mais uma organização de intelectuais de esquerda de alto nível. E a lista não é pequena (ver: sepla.cjb.net), pois, segundo Paulo Nakatani (Brasil), na entrevista que abre esta edição da Olhar Crítico, a convocação para a constituição da SEPLA contou com cerca de 250 assinaturas e logo depois teve o apoio de mais 150 intelectuais de vários países da América Latina.

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