Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito em torno de um projeto de nação

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Num vídeo bem interessante, “Colonização e formação do Brasil”, Fernando Novais nos ensina sobre os obstáculos em se pensar um projeto de nação, sob condições impostas de fora para dentro. No entanto, se tal assertiva pode parecer óbvia para o período colonial, nem sempre ela tem sido considerada nas interpretações acerca dos desdobramentos dos processos de descolonização e de independência formal, motivos das comemorações oficiais deste ano, em torno dos “200 anos”, com coração do imperador e com tudo.

Elenco aqui alguns parâmetros que considero essenciais para abrir uma outra agenda de debates com base nesse tema. De início, é preciso considerar as restrições fundantes da integração do Brasil à produção industrial mundializada, as tentativas de diversificação produtiva por meio de vários planos de desenvolvimento e o posterior abandono da ideia de soberania pelas elites brasileiras, ao longo dos últimos dois séculos. Entendo esses movimentos como resultado de um processo inorgânico de descolonização e de formação singular de um Estado-nação subalterno na geopolítica internacional.

A incipiente produção industrial brasileira se manteve atrelada à necessidade de soluções para os entraves colocados a cada momento para a acumulação de capital nas grandes potências imperialistas. O próprio processo de superação da escravatura, no final do século XIX, acabou se realizando de forma inorgânica, para atender às exigências de redução dos grandes diferenciais de produtividade do trabalho, em relação à produção organizada nos grandes centros industriais do Norte. O trabalho compulsório nas ex-colônias encarecia o suprimento de insumos em geral, comparado ao valor da produção industrial europeia, dos Estados Unidos e do Japão, ao mesmo tempo que limitava a possibilidade de maior produção de mais valia relativa, pois, impunha certa rigidez no valor dos alimentos e de outros meios de consumo destinados às classes assalariadas. A saída seria, então, a produção industrial de insumos básicos nas ex-colônias e tal imposição era incompatível com o regime de escravidão, defendido pelas elites monocultoras.

Cabe aqui, portanto, compreender o próprio conceito de industrialização. O processo completo de industrialização pressupõe o controle sobre a integração dos parques industriais de meios de consumo e de meios de produção, prerrogativa alcançada apenas pelas potências imperialistas, que comandam os processos de inovações tecnológicas, as decisões de produção e as linhas de financiamento em todo o mundo. Os grandes conglomerados econômicos organizados a partir da Europa, dos Estados Unidos e do Japão, mantêm um rigoroso monitoramento do processo de exportação de capital, controlando os investimentos que fazem fora de seus respectivos territórios, regulando a transferência de conhecimentos técnico-científicos e as linhas de crédito.

Por isso, países como o Brasil foram integrados à produção industrial organizada em nível mundial sob forte restrição, participando apenas em alguns elos das cadeias produtivas globais. De fato, do Plano de Metas (anos 1950) ao II Plano Nacional de Desenvolvimento (anos 1970) ocorreu uma significativa expansão da produção de meios de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, entre outros) e de produtos semielaborados para exportação (minérios, aço, petróleo, celulose, alimentos), diversificando relativamente o parque industrial instalado no Brasil. Entretanto, as marcas restritivas impostas de fora mantinham a dependência brasileira na importação de máquinas e equipamentos tecnologicamente mais sofisticados, bem como de uma série de matérias-primas não produzidas internamente na escala exigida pelo crescimento da produção interna.

Dessa forma, considerando apenas os aspectos estritamente econômicos, é possível observar que, em nações como o Brasil, marcadas pelas heranças da obediência colonial ao exclusivo metropolitano, o processo de modernização industrial ocorreu de maneira bastante lenta e tecnologicamente descontínua, exigindo a manutenção de várias de suas formas fundacionais de acumulação violenta.

Do ponto de vista político, também é possível perceber a montagem de um Estado-nação subalterno, como reflexo da dominação burguesa centralizada nas grandes potências imperialistas, mantendo sob controle a realização dos interesses das novas elites nacionais, que se formaram no interior do processo de descolonização inorgânica do Brasil.

O regime político apropriado à tarefa de manter a transferência da maior parte da riqueza produzida internamente para os grandes centros imperialistas, após a independência formal, não poderia deixar de ser bastante autoritário. A rigidez autoritária visa, de um lado, garantir a intermediação de interesses das elites subalternas na apropriação das migalhas deixadas aqui pelo grande capital sediado nas grandes potências. As disputas pelas parcelas do excedente retidas internamente não se restringem aos mecanismos avançados dos mercados capitalistas, muito ao contrário, pois, junto à modernização das relações concorrenciais foram mantidos vários dos instrumentos de acumulação violenta e da informalidade na troca de favores, entre o público e o privado, que predominaram no período colonial.

De outro lado, o regime autoritário também deriva da exigência de reprimir qualquer contestação pelas classes trabalhadoras ao rigor da superexploração da força de trabalho, o qual opera como forma de compensar as elites gestoras das empresas aqui instaladas das perdas provocadas pela forma subalterna como as mercadorias produzidas no Brasil participam da competição nos mercados internacionais.

Somente considerando as heranças do nosso passado colonial e a consequente inorganicidade do processo de descolonização é que podemos entender o sentido da subalternidade brasileira ante às forças imperialistas. Duzentos anos após 1822, nos vemos prisioneiros de um projeto subserviente de nação que, em algum momento, foi embalado pelo mito do Brasil-potência, do “país do futuro”, mas, que agora, se vê endividado e forçado a desnacionalizar todo seu parque produtivo, por meio das privatizações das estatais e das fusões e aquisições das empresas privadas.

É preciso termos nítido que desnacionalizar o parque produtivo não significa apenas uma transferência de patrimônio de parcela das empresas para o exterior. Trata-se, muito mais que isso, de deslocar os centros de decisão, sobre o futuro da produção nacional, para fora do país, perdendo de uma vez por todas o que poderia ser considerado como alguma forma de soberania.

É nesse contexto que estão sendo propostas as medidas de maior flexibilização da legislação trabalhista e de adestramento das famílias trabalhadoras, enquanto as elites subalternas articulam a fuga para paraísos fiscais das migalhas que conseguiram acumular violentamente nestes últimos 200 anos, como recompensa por sua subserviência à contínua transferência das riquezas nacionais, em favor do grande capital imperialista.

Os arautos dos chamados “novos tempos” continuam com sua cantilena, enquanto articulam a manutenção de um Estado de direito subalterno, que não vacila, inclusive, em operar uma nova onda de repressão, de genocídio e de destruição do que resta do patrimônio natural brasileiro, ante ao desespero imperialista em sanar uma crise econômica mundial, que se arrasta há mais de cinco décadas, sem qualquer perspectiva de solução amistosa.

Reflitamos! Qual é efetivamente o nosso papel neste momento?

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