Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Virar o jogo numa partida muito longe do fim

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

“Arte popular do nosso chão
É o povo que produz o show e assina a direção”

Jorge Aragão

“E me perdoe se eu insisto nesse tema”

Antônio Carlos e Jocáfi

200 anos é pouco. É efetivamente um período curto, se comparado a outras trajetórias, porém, a meu ver um prazo suficiente para compreendermos o que se passa nas perspectivas mais gerais sobre a atual transição, aparentemente, para o mesmo lugar, ou, se preferirem, para um passado recente do Brasil, como se isso fosse possível.

Acredito que o mais prudente, agora, seria a gente voltar a refletir sobre a construção do ser humano novo, com outras formas de pensar sua própria existência social. Reflexão no sentido dialético, ou seja, o ato de voltar-se a si, com o fim de descobrir o que cabe efetivamente fazer, para além das fugas mais costumeiras, pois, o alvo deve ser transformar substancialmente o que incomoda de fato. Um exercício que leva imediatamente ao coletivo, ao comum, ao sentido solidário.

Nos anos 1980 ouvíamos do saudoso professor José Ricardo Tauile, da UFRJ, que não haveria nada mais óbvio naquele momento do país que, ao contrário de simplesmente descartar nos lixões, as agências e empresas públicas orientassem os equipamentos de informática, continuamente substituídos por modelos mais sofisticados, para programas sociais vinculados à educação de crianças nas favelas.

O mundo estranhado por Tauile ficou ainda mais esquisito. Após vários esforços, que resultaram em substanciais alterações qualitativas nos conteúdos do ensino público, desde a educação básica até a universidade, nas últimas décadas foi sendo gradativamente sedimentada a ideia de restauração conservadora das grades curriculares.

Talvez, o momento mais marcante da vida nacional, nesse sentido de abrir oportunidades efetivas para uma nova integração social, tenha sido aquele da curta experiência do Programa Escola Aberta, implantado a partir de 2005 em todo o país. Numa parceria do MEC e da Unesco com as secretarias estaduais e municipais de educação, foram criados vários conselhos de níveis locais e regionais do programa, destinando recursos orçamentários para o desenvolvimento de atividades artesanais, minicursos culturais e esportivos de várias modalidades, envolvendo os saberes disponíveis nas próprias comunidades, colocando em prática a formação integral dos membros das comunidades, aos sábados e domingos.

É bom lembrar, também, que parcerias como essas deram início a uma das experiências mais exitosas de educação integral, com a criação do Bairro-Escola, na Cidade de Nova Iguaçu-RJ, a partir do qual foram difundidas as iniciativas de construção dos projetos políticos pedagógicos por meio da interação das escolas com as comunidades.

No entanto, ao contrário de avançarem na expansão desses programas, incluindo inclusive outros equipamentos públicos ociosos nos finais de semana, o Escola Aberta foi esvaziado. A partir dali foram criadas as escolas de tempo integral, com grade curricular e material didático orientados por fundações e outros aparelhos ideológicos empresariais, que ascenderam à condição de formuladores das políticas educacionais no Brasil, com a adesão de governantes e parlamentares de plantão, nas três esferas federativas. Agigantaram, ao mesmo tempo, as proposições mais conservadoras de apologia ao currículo de moral e civismo, deslocando as disciplinas de História, Filosofia, Sociologia, entre outras, ao limbo da marginalidade curricular.

Por isso, parece haver um consenso de que a derrota eleitoral recente da chamada ultradireita no Brasil só se converterá numa reversão política, explicitamente a favor da mudança requerida, se houver uma ampla mobilização das forças populares, a partir de suas próprias experiências de resistência e de luta, contra o genocídio colocado em marcha recentemente.

A meu ver, essa mobilização passaria por retomar o acúmulo de saberes dos povos em luta. É preciso recuperar a perspectiva de sujeito histórico, afastando as saídas de curto prazo vinculadas ao cotidiano da mercantilização da vida, o que requer horizontes mais alongados, superiores, porém, viáveis. Portanto, considerar os saberes populares e a partir deles difundir formas mais humanas de organização do trabalho e de proteção da natureza devem ser a base da proposta, de aproveitamento das experiências vividas, nas iniciativas populares de luta, que estão invisibilizadas pelas conveniências do imediato. A partir delas é possível planejar a viabilidade de uma nova sociabilidade, por meio das práticas solidárias de resolução de problemas cotidianos, em marcha nas comunidades tradicionais, no campo e nas favelas urbanas, tais como a fome e a precariedade das condições de saúde, educação, moradia, saneamento ambiental etc.

Do sul do México me vem a imagem de um imenso caracol de interação política, de intercâmbio de saberes, de integração cultural e de solidariedade nas lutas. Suas dimensões e formato dependem da capacidade das iniciativas populares em fazer interagir as várias experiências exitosas de resistência e de mobilização, no campo, nas aldeias, nos quilombos e nas favelas, ocupando cada vez mais espaços urbanos, para a expressão e articulação dessas táticas singulares. Imagine a difusão de caracóis autogestionados na busca de soluções para alguns dos problemas do cotidiano, espalhando laços de solidariedade, saberes e disposição para a luta cotidiana.

Daí, da interação das lutas, talvez possam nascer novos instrumentos políticos, mais orientados às transformações requeridas, a partir da perspectiva de horizontes superiores de construção social, muito além dos cantos de sereia contemporâneos, que nos faz rodar o toco, enquanto o grande capital impõe cada vez mais instrumentos de cooptação empreendedora, de mercantilização da política, das práticas cotidianas de organização e, portanto, da vida.

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