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Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

De guerra em guerra… o movimento do capital

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

O início do século XIX marcou um salto de qualidade substancial para os Estados Unidos rumo à construção da potência mundial capitalista que conhecemos. Como desdobramento da Revolução Francesa, a necessidade de financiamento das guerras napoleônicas facilitou a aquisição de uma parcela substancial das colônias da França na América do Norte, dando novo impulso à chamada Corrida para o Oeste, a qual incluiu uma violenta guerra contra o México, na tomada da região do Texas e imediações. Ao mesmo tempo, à medida que o avanço das tropas de Napoleão Bonaparte ameaçava os fluxos do comércio internacional na Europa, a marinha mercante dos Estados Unidos ganhava novas oportunidades de expansão, no abastecimento de muitos países envolvidos diretamente nos conflitos bélicos de então.

Com a queda de Napoleão surgia a combinação perfeita entre a ideologia do Destino Manifesto e a estratégia de combate expressa na chamada Doutrina Monroe. Em seu conjunto, tratava-se de legitimar a expansão territorial dos Estados Unidos, a partir da ideia dos supostos desígnios divinos que teriam destinado à pátria do Tio Sam tarefas de redentora da humanidade, o que naquele momento significava, especialmente, proteger as Américas das ameaças europeias de recolonização, considerando os tratados de remapeamento de fronteiras articulados em Viena.

Ao longo do século XIX, a reprodução desses mitos mantinha um conteúdo estratégico: não se tratava apenas de constituir mais uma entre outras potências mundiais, mas, substituir o poder britânico nas relações capitalistas internacionais. Durante o reinado da rainha Victória (de junho de 1831 a janeiro de 1901), ocorreu uma grande expansão do comando territorial inglês, em todo o mundo. Daí a propaganda estadunidense em torno da necessidade da descolonização, procurando legitimar de todas as formas sua intervenção direta e indireta nos processos de independência.

Aquele período ficou conhecido como a Pax Britannica. Mas, na verdade, se multiplicaram as revoltas populares, guerras civis e vários conflitos bélicos internacionais, até a consolidação das grandes potências imperialistas que, mais tarde, promoveriam as duas grandes guerras mundiais, no século XX.

A consolidação do capital originário inglês exigiu a expansão da revolução industrial para além de suas fronteiras, mas, também, a necessidade de uma intensa articulação política. Era necessário fortalecer econômica, política e militarmente as burguesias em todo o continente europeu, para pôr fim à reação política e militar da nobreza, que procurava manter seus privilégios de grande proprietária de terras, se apegando aos resquícios feudais até então presentes nos reinos, impérios e principados absolutistas. Aproveitando-se das revoltas populares, contra o recrudescimento do autoritarismo monárquico, o grande capital tratou de consolidar o processo de espraiamento das revoluções burguesas, conduzindo as massas proletárias para grandes conflitos militares.

Nesse sentido, a era vitoriana não constitui um período tão pacífico assim. Onde a grande burguesia não conseguia se fortalecer, a intervenção externa não tardava, como o caso dos projetos de expansão territorial colocado em ação pelo czarismo russo, o qual foi contestado pelas maiores potências europeias e, ao contrário de relações diplomáticas vitorianas, tais conflitos resultaram na Guerra da Crimeia (1853-1856), por exemplo. Essa guerra se estendeu o suficiente para reestruturar o patriotismo russo e dar uma guinada em seu processo interno de industrialização capitalista, com base na produção bélica e infraestrutural pesada.

Foi naquele período, também, que os súditos burgueses da Rainha Victória instauraram a formalização de um negócio tradicionalmente conduzido por traficantes, para remediar as dificuldades de colonizar a China nos moldes ocidentais. A partir de uma logística marítima poderosa colocaram em marcha a ampliação da exportação de ópio para o território chinês, a partir de suas bases coloniais no sul da Ásia, com o objetivo de repatriar a prata deixada na China em troca de um volume crescente de sedas, chás e porcelanas. Uma vez que os prejuízos econômicos e sociais se avolumavam, pela generalização do vício provocado pelo entorpecente preferido pelas classes abastadas e pelo corpo dirigente e militar da China, ocorreram várias intervenções imperiais no sentido restringir a importação da droga, o que resultou nas Guerras do Ópio, declaradas pelas forças britânicas.

Um desdobramento interessante desses conflitos no Extremo Oriente foram as operações militares do Reino Unido e dos Estados Unidos para quebrar o bloqueio cultural, econômico e geopolítico exercido pelo xogunato japonês. Os ataques ocidentais ao Japão acabaram abrindo a oportunidade para o fortalecimento da burguesia naquele arquipélago, proporcionando as condições para que as rebeliões populares contra os resquícios feudais pudessem se converter num processo particular de industrialização, com base na produção voltada para a defesa nacional.

No outro lado do Pacífico, se intensificavam os processos de descolonização, nas Américas, e os Estados Unidos puderam avançar ainda mais em suas aventuras militares transoceânicas, pois, já haviam generalizado o poder das forças burguesas em seu próprio território, abolindo a escravidão nas antigas colônias inglesas do Sul, integrando-as à consolidação das relações capitalistas de produção por meio da Guerra de Secessão.

Na Europa, as dificuldades de unificação dos principados restantes entre os germânicos motivaram a Prússia a uma tática militar de grande ousadia. A provocação do chanceler prussiano Oto von Bismark à Napoleão III, levou à declaração de guerra pela França, dando início ao sangrento conflito franco-prussiano, o qual serviu para a realização de um pacto militar germânico, passo fundamental na unificação política e territorial, que se consolidou na sequência. Se a Guerra Franco-Prussiana foi um pressuposto para o avanço da industrialização alemã, com fortalecimento do poder da burguesia germânica numa dimensão nacional, ela também foi responsável por desmontar os resquícios monárquicos na França, após a queda de Napoleão III. Cabe destacar que as forças germânicas também foram fundamentais no massacre da Comuna de Paris, abrindo ainda mais espaço para o fortalecimento da grande burguesia francesa e para a fundação da Terceira República.

Esses são exemplos marcantes de como a consolidação do capitalismo, no século XIX, se constituiu como fruto de intensos conflitos bélicos internacionais e não da livre concorrência das forças do mercado, como sugerem alguns/mas intelectuais a soldo do capital. Isso nos ajuda a entender que as guerras geram heróis, mártires e vilões apenas na propaganda. O que importa mesmo nesses grandes confrontos são as oportunidades para grandes negócios, lucros suficientes para o fortalecimento e para a reprodução do poder do grande capital.

O século XX constituiu um período perfeito para entender melhor os desdobramentos dessa política do capital, “como ela é”, mas, isso pode ser objeto de um próximo textinho.

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