Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Guerras mundiais e as veias abertas pelo capital

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

“Em 1911, como governador de New Jersey, Woodrow Wilson, entusiasta da eugenia, assinara uma lei autorizando a esterilização de criminosos, epilépticos e débeis mentais. Nas décadas seguintes, cerca de sessenta mil norte-americanos foram esterilizados, mais de um terço deles na Califórnia. As mulheres sexualmente ativas eram especialmente visadas. O futuro líder alemão Adolf Hitler seguiu atentamente esses desenvolvimentos, declarando que modelou algumas das suas estratégias de “raça superior” com base nos programas norte-americanos, que ele elogiava, mas também criticava por irem só até a metade do caminho. Ele iria além. Muito além.”

(Oliver Stone e Peter Kuznick, no livro “A história não contada dos Estados Unidos”)

A propaganda de guerra costuma levar à orientação ideológica como se tratasse de uma disputa entre heróis e vilões tais como Roosevelt, Churchill, Stalin, Hitler, Mussolini, entre outros. Por trás desse véu doutrinário, no entanto, está o movimento do capital em busca da realização de seus interesses, não importando com os efeitos de suas ações predadoras. Dessa forma, a ganância capitalista e a despreocupação de suas lideranças com qualquer sentido de humanidade se tornam as verdadeiras motivações para os grandes conflitos bélicos da era contemporânea.

A primeira metade do século XX foi o período de realização do projeto de dominação total traçado anteriormente pelos EUA sob a égide do Destino Manifesto. Após grandes depressões econômicas e duas guerras mundiais, Wall Street substituiu definitivamente a City Londrina, como centro de regulação dos fluxos internacionais de capital, momento em que a doutrina do dólar forte desbancaria de vez a libra esterlina, tornando-se a partir dali a toda poderosa moeda mundial. Sem qualquer abalo em seu próprio território, por estar longe dos grandes palcos das batalhas, a produção industrial estadunidense tornou-se fundamental no abastecimento das tropas, exportando alimentos, armas tecnologicamente avançadas, tanques, aviões de combate etc., ao mesmo tempo que os bancos vinculados aos grandes conglomerados dos Estados Unidos tratavam de financiar as crescentes importações desses aparatos, principalmente, pelos países europeus.

Detalhe importante. Tem sido bastante badalado o fato de que as dívidas de guerra, impostas pela Inglaterra e pela França à Alemanha, após o final da Primeira Grande Guerra, estavam entre as principais motivações para a ascensão de Hitler e para a declaração do segundo conflito mundial. No entanto, nem sempre fica nítido que aquela imposição foi a forma encontrada para contornar as dificuldades em honrar os compromissos relativos aos empréstimos realizados, por ingleses e franceses, durante a guerra, junto aos bancos privados dos Estados Unidos.

Outro detalhe. Mesmo sob proibição expressa do governo, grandes corporações com sede nos Estados Unidos financiaram o fortalecimento de governos totalitários no período entreguerras, para suprir as dificuldades na importação de petróleo, mas, também, para a compra de armamento pesado, sob o argumento da necessidade de conter a expansão soviética na Europa. Cabe lembrar, ainda, que as ditaduras europeias não se restringiram aos governos de Hitler e Mussolini, que foram destruídos durante a vigência das batalhas. O franquismo espanhol e o salazarismo português se estenderam até o início dos anos 1970 e puderam contar com forte aporte ianque para sua relativa perenidade, por exemplo.

Para não estender muito em ilustrações sobre esse fenômeno fora da Europa, bastaria lembrar da ditadura Vargas, as origens externas de sua viabilização e a brutalidade com que foram atacadas as manifestações das classes trabalhadoras, no Brasil, naquele mesmo período.

Na verdade, com o fim da chamada Pax Britannica tudo mudaria no mundo sob o jugo da doutrina liberal. Passado o susto da grande depressão, iniciada em 1873, a virada para o século XX parecia renovar as esperanças de que o capitalismo seria mesmo o reino da liberdade e da prosperidade universal. Era o período áureo da Belle Époque, um movimento urbano cultural muito bem aproveitado pelos grandes magnatas que, embalados pela indústria automobilística, especialmente aquela sediada nos Estados Unidos, difundiam a ideia que toda família poderia, enfim, adquirir um automóvel, na difusão do chamado “Modo de vida americano”.

No entanto, logo se veria que por trás de todo aquele esforço midiático havia uma insegurança social estruturada. À ascensão de algumas camadas populares passaram a corresponder movimentos de eugenia, organizados inclusive por alguns governantes, mas, que pareciam socialmente sedimentados a partir do crescimento assustador das ações diretas de grupos supremacistas, em várias partes do mundo. Naquele momento, a Ku Klux Klan, nos Estados Unidos, era o símbolo máximo daquele movimento mais geral, que procurava mostrar por meios violentos que, infelizmente, o reino das oportunidades não era para todo mundo.

Assim, o que era visto inicialmente apenas com desconfiança passava a se realizar a olho nu, cotidianamente. Na medida em que a crise econômica ressurgia qual Fênix, em meio às cinzas publicitárias que procuravam, em vão, massificar o consumismo, proliferavam as filas de desempregados/as em busca de um prato de sopa, demonstrando cada vez mais nitidamente que os ideais liberais haviam falhado novamente. Daí ao apoio às propostas de radicalização autoritária foi um pulo.

O que aconteceu na Europa tem sido bastante explorado, inclusive, no cinema. Porém, é preciso recuperar que, após o início da depressão econômica manifesta com a quebra da Bolsa de Nova York no final de 1929, Roosevelt, o grande herói democrata do New Deal, forçou alterações na Constituição e permaneceu governando os Estados Unidos, de 1933 a 1945, ano de sua morte. Além disso, Truman, seu sucessor, só o foi porque aplicou um golpe na convenção do Partido Democrata, após o conhecimento do resultado das primeiras votações que mantiveram o nome do vice-presidente Henry Wallace, novamente, como companheiro de chapa de Roosevelt para as Eleições de 1944. Com o golpe, Truman acabou compondo a chapa vencedora, sendo eleito vice-presidente e, com isso, sucedeu a Roosevelt, que morreu meses antes da posse para o que seria seu quarto mandato. Sem dúvida, aquele era um momento de sucessivas crises econômicas e políticas, que colocava mais uma vez em cheque os ideais da democracia liberal, em seus vários matizes. Mas, voltemos à guerra, que é o nosso tema.

Assim como na Primeira Guerra, ante as ameaças de Hitler invadir a Polônia, em meados de 1939, as forças do capital sediadas nos Estados Unidos assumiram a posição de aparente neutralidade. De olho nas vantagens que poderiam colher, o argumento seria de que aqueles eram conflitos para a Europa resolver internamente.

Dois anos antes, o Japão iniciou sua escalada na ocupação tática da China, com o objetivo estratégico de aproveitar o tamanho e a diversidade de riquezas daquele imenso território para, posteriormente, avançar seus domínios para o Ocidente. Conter o Japão seria, por si só, uma prioridade. Mas, mesmo assim, as forças armadas ianques só se mobilizaram definitivamente em 1941, após os ataques aéreos japoneses à base naval de Pearl Harbor, localizada no Havaí. Antes disso, tropas dos Estados Unidos se limitaram a incursões no deserto da África, a partir de meados de 1940.

A invasão das forças alemãs na Polônia, em 1939, fazia parte de uma antiga tática de Hitler em alcançar seu objetivo primordial: ocupar a União Soviética como base para suas pretensões de conquistas territoriais. A relutância dos Estados Unidos em abrir uma segunda frente de batalha, no norte da Europa, teria um sentido estratégico que, no entanto, não se realizou. Para o comando do grande capital daquela época, parecia ser muito mais interessante deixar que as forças alemãs e soviéticas se destruíssem mutuamente, do que apoiar militarmente a vitória uma delas.

Cabe lembrar que a tecnologia de guerra daquela época, uma vez colocada em operação, significava a destruição física de amplos complexos urbanos industriais. Daí o outro pressuposto para os Estados Unidos postergarem a abertura de uma segunda frente: estender o período de destruição massiva naqueles territórios, abriria a oportunidade para, no pós-guerra, impedir a recuperação dos processos de industrialização colocados em marcha pelas nações tidas como inimigas, tornando-as meros celeiros de matérias-primas para o restante do mundo.

A protelação mantinha os Estados Unidos como grande fornecedor de suprimentos e de empréstimos para as nações em conflito direto e isso reforçaria as pretensões do grande capital ianque na concorrência internacional. No entanto, sem o apoio esperado, as forças soviéticas traçaram um recuo tático, permitindo, inclusive, o avanço das tropas nazistas até Moscou, enquanto organizavam uma contraofensiva, nas regiões mais interioranas de seu território, preparando uma tecnologia própria de combate, que seria usada a partir da chegada do inverno e dos ventos siberianos.

Na medida em que as tropas soviéticas colhiam seguidas vitórias sobre as alemãs, conquistavam também novos territórios na Europa, criando um reposicionamento geopolítico fundamental para o período posterior. Quando as forças armadas dos Estados Unidos resolveram, enfim, abrir uma nova frente de batalha na Polônia o caldo já estava derramado. Cabe lembrar que os Estados Unidos só aceitaram este acordo após o comprometimento de uma intervenção soviética na China, tida como fundamental para ajudar na expulsão das tropas japonesas, o que também favoreceria a posição das forças socialistas em franca ascensão, também, no Sudeste Asiático.

Esses são apenas alguns dos aspectos fundamentais para a compreensão do que seriam as relações internacionais após o fim da Segunda Guerra Mundial. Com a morte de Roosevelt, entrou em vigor a Doutrina Truman, dando início à chamada “Guerra Fria”, tendo como adversária uma União Soviética inteiramente refortalecida após a celebração do Pacto de Varsóvia e da criação de um sistema internacional de cooperação entre nações que operavam a construção do socialismo.

Assim, os aportes de grandes investimentos do capital sediado nos Estados Unidos, voltados para a reconstrução das nações capitalistas destruídas pelos conflitos bélicos, a partir do Plano Marshal, teria como contrapartida a instalação de diversas bases militares ianques, na Europa e na Ásia. Essa foi a forma de garantir proteção às possibilidades, bastante viáveis, de expansão da influência soviética e, por isso mesmo, a Alemanha e o Japão não poderiam ficar de fora e foram imediatamente integradas aos planos de reestruturação industrial, tornando-se logo mais adiante grandes potências concorrentes novamente.

Os desdobramentos dos pactos internacionais firmados no final da Segunda Guerra podem ajudar a entender melhor as guerras como parte fundamental na reprodução do grande capital. Porém, a prosa já se estendeu muito aqui, então é melhor deixar para um outro momento. Até lá!

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