Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

O mito das vanguardas esclarecidas I

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

“A separação entre direitos e deveres só é possível mediante a separação entre a liderança ativa e a massa passiva, mediante a ação da liderança como representante da massa, portanto mediante uma ação fatalista e contemplativa da massa. A verdadeira democracia, a anulação da separação entre direitos e deveres, não é nenhuma liberdade formal, mas uma atividade solidária e internamente coesa dos membros de uma vontade coletiva”

György Lukács

Parece não haver dúvidas de que a generalização do aburguesamento ideológico tem sido a base para a reprodução social sob a ordem capitalista. De um lado, as relações do capital se reproduzem pelas próprias marcas da vida cotidiana, que impõem o viver rotineiramente, no automático, evitando assim o refletir consciente, o voltar-se a seu próprio âmago, o que impede o reconhecimento de si mesmo como sujeito. No entanto, parece que este intenso processo de alienação coletiva não é suficiente para o controle sistemático, o que requer uma rede estratificada de acesso aos meios de consumo, que apareça como o reino da liberdade de escolha e da oportunidade de conquista individual por melhores dias.

Tanto a execução das rotinas como o acesso a determinados padrões de consumo ocorrem atualmente em níveis cada vez mais mercantilizados. Generalizam-se, assim, as relações mercantis, em todas as instâncias do convívio social estratificado, amplificando as desigualdades. No entanto, o sistema como um todo tem mantido sua capacidade de sustentação, difundindo sua carga ideológica, mesmo diante de todas as evidências da situação crítica da depressão econômica mundial e de suas drásticas consequências socioambientais.

As dificuldades de superação dessa longa onda de crises e o agravamento das condições sociais e ambientais para a reprodução da vida, ao mesmo tempo que permite sugerir estarmos mesmo numa etapa de senilidade do capitalismo como modo de produção organizado em nível mundial, nos remete à seguinte indagação: por que as grandes contestações à ordem do capital, que se manifestam de tempos em tempos, ainda não foram capazes de se espraiarem num movimento se sublevação total?

Levanto aqui algumas hipóteses para agitar o debate neste início de ano. A estratificação de acesso direto aos meios de consumo ainda consegue manter uma coesa e espessa manta amortecedora entre a sela e a pele, enquanto o capital segue a cavaleiro.

Ante o aprofundamento da crise estrutural, não tem sido possível manter a tributação sobre os ganhos de capital, invertendo, inclusive o fluxo de gastos públicos, antes voltados para as políticas compensatórias, agora, para o financiamento da produção, do comércio e da pura especulação.

O crescimento do desemprego estrutural, associado aos cortes drásticos nos gastos essenciais do Estado tornam o acesso aos meios de consumo ainda mais restrito. Além dos privilégios de quem detém a grande propriedade dos meios de produção, fica cada vez mais seleto o estrato social composto por famílias proprietárias de pequenos e médios negócios e, também, por aquelas com vínculos empregatícios de maior remuneração.

Inexorabilidade e oportunismo

"A história mundial seria na verdade muito fácil de fazer-se se a luta fosse empreendida apenas em condições nas quais as possibilidades fossem infalivelmente favoráveis. Seria, por outro lado, coisa muito mística se os 'acidentes' não desempenhassem papel algum. Esses acidentes mesmos caem naturalmente no curso geral do desenvolvimento e são compensados outra vez por novos acidentes. Mas a aceleração e o retardamento são muito dependentes de tais 'acidentes', que incluem o 'acidente' do caráter daqueles que de início ficam à frente do movimento."

Karl Marx

Nesse processo de profunda pauperização, a carga ideológica mais eficaz tem sido forjar algum direito de ostentar o acesso, mesmo que precário, a alguma forma de suntuosidade. O seletivo aparece, assim, como um direito exclusivo, negado à grande maioria em processo de agigantamento, porém, também aparece como uma oportunidade de ostentação de uma aparente colocação social, que permitiria se manter distante da pobreza que se generaliza. Por isso tal ideologia possui mais eficácia, para os fins a que serve, entre os estratos sociais que estão na margem dessa seletividade, numa posição intermediária.

Desastre maior tem sido o alcance dessa capacidade de cooptação à lógica avassaladora do capital em crise. Muitas das pessoas, que nitidamente estão afastadas do acesso aos meios de consumo prometidos pelos arautos do reino da liberdade e da oportunidade, continuam em luta permanente de contestação à ordem, mesmo que não saibam defini-la precisamente, em seus labirintos essenciais. No entanto, muitas outras acabam introjetando a reação proprietária ante a crise capitalista como norma inexorável, mesmo que ela esteja carregada de instrumentos mercantis e institucionais voltados para a acumulação violenta explícita. As ações contestatórias do primeiro grupo são sutilmente invisibilizadas, enquanto o comportamento aparentemente passivo do segundo grupo não apenas tem sido ovacionado pelas mídias proprietárias, como são convertidos em parâmetros curriculares “empreendedores”, inclusive nos processos educativos mais formais. Ambas operações são movidas por interesses, mas, apenas o modo de proceder do segundo grupo social é tido como aquele que obedece à ordem natural das coisas.

O agravamento da situação se explicita quando a capacidade alienante das relações do capital envolve de forma especial parte substancial da vanguarda tradicional das lutas populares. Isso não tem sido um problema apenas por suas consequências imediatas, no arrefecimento da combatividade contestadora, mas, também, por reproduzir a invisibilidade das manifestações efetivas de insatisfação popular e por procurar garantir, sob sua direção, formas de controle sobre os movimentos espontâneos dos agrupamentos sociais não tão organizados. O discurso chega a ser irritante: “não está na hora”, “a correlação de forças não permite”, “não temos condições objetivas agora, deixemos isso para as gerações futuras” etc.

As formas mecânicas de organização dos movimentos de luta parecem mais uma vez esconder o oportunismo das lideranças que insistem em se manter entre a sela e a pele. Nossa autocrítica deveria começar por reconhecer o quanto deixamos de denunciar tais embustes e seus interesses efetivos.

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