Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Adeus ao centralismo democrático? - I

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

[…] aplicar realmente os princípios do centralismo democrático na organização do Partido, trabalhar incansavelmente para fazer das organizações locais as principais unidades organizacionais do Partido de facto, e não apenas no nome, e ver para isso que todos os órgãos superiores sejam eleitos, responsáveis e sujeitos a destituição.

Lênin

No início de 2023 publicamos um textinho com o título “O mito das vanguardas esclarecidas”. Nele, procurei apontar algumas das consequências do que chamei de aburguesamento ideológico das esquerdas partidárias e de muitas das lideranças populares na atualidade. Me parece que estamos num momento propício para retomar esse tema, porém, agora sob o prisma do despotismo implícito nas abordagens de boa parte das organizações identificadas no campo democrático popular.

Não custa lembrar, aliás, que a ideia de lideranças esclarecidas remonta os tempos de reafirmação do poder absolutista, ante o fortalecimento político da burguesia como extrato social dominante, o qual pregava a igualdade e a liberdade como bandeiras revolucionárias. Para tais governantes, o discurso iluminista da modernização do Estado não seria um grande problema, desde que conseguisse manter o controle verticalizado sobre as aventuras mercantilistas e sobre as forças manufatureiras. A emergência do marquês de Pombal seria um exemplo mais próximo da gente, aqui no Brasil, entre as experiências do despotismo esclarecido, experimentado no final do século XVIII.

Talvez estejamos numa era crítica como aquela, uma vez que o espalhamento de rompantes autoritários não se limita ao exercício de governantes, muito ao contrário. Tal comportamento abrange, inclusive, a ação cotidiana de quem discursa a contestação à ordem, mas, se guia de fato pelo lema da defesa do Estado Democrático de Direito, o que, em tese, não envolveria qualquer incongruência, uma vez que não se enxerga mais a revolução como horizonte a atingir.

Com o objetivo de avançar na discussão sobre discurso e prática, talvez valha a pena recuperar um antigo debate, em torno da “questão da organização”, para lembrar os 100 anos que nos separa da morte de Lênin. Lukács, pouco antes do início do fatídico 1924, iniciou sua reflexão sobre esse tema, no último capítulo de seu “História e Consciência de Classe”, chamando a atenção para a seguinte observação:

A Revolução Russa revelou os limites das formas de organização próprias da Europa ocidental. O problema das ações e da greve revolucionária das massas mostra a impotência dessas formas diante do movimento espontâneo das massas; abala a ilusão oportunista implícita na ideia de “preparação organizativa” de tais ações; demonstra que tais organizações apenas retardam, inibem e impedem as ações reais das massas, em vez de incentivá-las ou mesmo dirigi-las.

Não se trata de aderir, ou não, à síntese crítica que Lukács procurou fazer, naquele momento, ao debate entre Lênin, Rosa Luxemburgo, entre outros/as. A proposta, aqui, é extrair do trecho citado acima elementos de indicação de rumos para a compreensão de como se coloca essa questão na atualidade, especialmente, no que se refere à concepção leninista de centralismo democrático e de sua deturpação ao longo do tempo, de parte a parte.

Do que se trata?

Em sua concepção original, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o centralismo democrático resultaria da plena liberdade de discussão e de deliberações descentralizadas, desde as células locais, até chegarem às assembleias regionais e aos congressos mais abrangentes. Dessa forma, a substituição do regime político burguês, estritamente mercantil representativo, pressuporia o exercício da participação popular direta, a partir de processos dialógicos de informação, discussão e de deliberação, em cada instância organizativa. Além disso, Lênin previa que o novo regime seria transitório, isto é, necessário até o alcance do poder popular, efetivamente.

O fato de que as deliberações de cada local fossem reavaliadas nas instâncias superiores, na medida em que se confrontassem com as definições das demais localidades, não significaria que, uma vez decididas, as resoluções jamais pudessem ser debatidas, criticadas e até revistas, se fosse o caso.

Liberdade de crítica e unidade na ação constituiu a base da formulação proposta por Lênin. Desde que a crítica não inviabilizasse a unidade de ação, a liberdade de discussão deveria ser garantida, dizia ele. Em síntese, a dialética do fazer o centralismo democrático pressuporia a descentralização dos estudos e dos debates sobre determinado tema. A liberdade de crítica deveria ser garantida até o limite em que se inicia o momento de colocar as resoluções em prática. Até lá, toda decisão estaria na condição passível de revisão, desde a base de deliberações.

No que se tornou aqui no Brasil?

A prática política revolucionária acabou invertendo, ao longo de décadas, a concepção do centralismo democrático, tal como foi formulado em sua origem. Após a morte de Lênin, cada vez mais as resoluções foram se tornando mais verticalizadas, constituindo regimes em que as decisões pelo alto deveriam ser obedecidas, sob o risco de expurgo sumário.

Décadas após o auge e o declínio da União Soviética, depois de toda a oscilação entre as experiências de governos progressistas e, agora, com a retomada da onda autoritária, em todo o mundo, talvez tenhamos que refletir sobre o que se tornou a prática dirigente das organizações contestatórias e, também, sobre seus reflexos na mobilização popular, em especial, no Brasil.

A crítica à ditadura militar, instaurada em 1964, foi elemento essencial ao surgimento de novas práticas de organização e de contestação às formas de tutela sobre os movimentos sindical e populares constituídas desde o período Vargas. Nascia naquele esforço de superação do totalitarismo, num contexto em que ele se exacerbava, o que parecia ser uma nova concepção sobre como construir alternativas de fato, baseada na constituição de núcleos de base nas comunidades, nos bairros e nos locais de trabalho, a partir dos quais eram informadas, debatidas e deliberadas as propostas de organização. Organizar a resistência e avançar nas proposições de alternativas eram os objetivos centrais, naquele momento.

No entanto, este rico movimento de contestação não ocorria de forma isolada. Era um momento em que se acirrava uma grande crise econômica mundial e, também, um período em que a antiga União Soviética apresentava explícitos sinais de insustentabilidade de seu projeto de socialismo em um só país. A combinação de turbulências levou o grande capital a ensaiar os primeiros passos para o que se tonou adiante uma grande reestruturação produtiva, em nível global, a qual incluía entre suas táticas a desestruturação das organizações sindicais de trabalhadores/as.

Naquele contexto, a contestação ao regime militar no Brasil possibilitou, num primeiro momento, a simbiose de movimentos sociais distintos. Isso significou envolver a realização de planos de organizações clandestinas, inclusive, por meio do foquismo rural e da formação de núcleos urbanos armados. Ao mesmo tempo, ocorreram inciativas de organização popular nas comunidades, fomentadas por frentes religiosas baseadas na Teologia da Libertação, especialmente, mas, não apenas, aquelas orientadas a partir da opção pelos pobres, do Concílio Vaticano II. Cabe ressaltar, ainda, a contribuição das diversas modalidades de resistência protagonizadas pelo movimento estudantil, secundarista e das universidades, a qual demarcava, inclusive, seu envolvimento nas lutas nos bairros urbanos, no meio rural e nas mobilizações sindicais.

Com o passar do tempo, a explicitação dos resultados da política econômica ortodoxa, baseada no arrocho salarial, na desvalorização acentuada do Salário Mínimo e na deterioração da proteção social, consequente da redução dos gastos públicos, novos movimentos de insatisfação popular derivaram daquelas primeiras formas de resistência ao regime.

No final dos anos 1960, iniciaram as primeiras grandes manifestações grevistas organizadas no meio sindical. Dali nasciam os gérmens de proposições mais audaciosas de organização de trabalhadores/as urbanos/as, que resultaram mais tarde na formação do Novo Sindicalismo, cujas bases sustentariam as ideias de combate ao corporativismo e à tutela varguista ao Ministério do Trabalho, assim como de organização dos/as trabalhadores/as por local de trabalho, por meio das comissões de fábrica.

Os anos 1970 também experimentaram a espontaneidade das mobilizações populares contra a inflação, inclusive com ataques a supermercados, motivada pelas grandes manifestações de rua, organizadas pelo Movimento do Custo de Vida, também denominado Movimento contra a Carestia.

Entretanto, o contexto de crises e a reação estratégica do grande capital orientaram o fim do regime militar no Brasil para um palco de grande conciliação nacional, articulado, de parte a parte, pelas lideranças políticas que surgiram ao longo dos 21 anos precedentes. Dessa forma, a virada para os anos 1990 foi marcada pelos movimentos de acomodação de interesses internos, em duas etapas de inflexão importantes, o movimento das Diretas Já! e o processo constituinte, as quais acabaram por inverter a rica trajetória de lutas e de mudanças organizativas ensaiadas no período anterior.

Assim, a via institucional se instaurou como norma de ação política. Como reflexos dessa inversão de rumos ficaram como heranças grandes organizações partidárias, sindicais e populares, estruturadas verticalmente por alçadas de decisão, de cima para baixo, normalmente obedecendo a distribuição entre as esferas nacional, regional e local. Com isso, a maioria das organizações identificadas com os interesses populares, foram perdendo as perspectivas do centralismo democrático, tal como formulada originalmente por Lênin, tornando as células de bases meros instrumentos acríticos de replicação das determinações decididas pelo alto.

A autonomia absoluta das forças dirigentes e seu consequente afastamento das demandas efetivas dos agrupamentos sociais a que se propõem representar, parecem ter sido os principais determinantes do que professora Virgínia Fontes tem chamado, na contemporaneidade, de conversão mercantil filantrópica dos movimentos populares e sindicais.

A retomada é possível?

Não há reposta simples a este respeito. Por isso, deixo o aprofundamento dessa questão para textos posteriores, me detendo aqui a sinalizar alguns caminhos potencialmente plausíveis de contribuição. De início, recuperar o direito de crítica e de protagonismo efetivo das instâncias de base, não apenas nas ações, mas, especialmente, nas decisões sobre a auto-organização e na formulação estratégica das lutas, parece ser o ponto central na busca de respostas a essa indagação sobre o futuro do centralismo democrático.

Mas, essa não tem sido uma tarefa fácil ante a construção mitológica de uma série de dogmas que, por sua natureza, deveriam ser incontestáveis. Talvez, o principal deles se refira à suposta necessidade de vanguardas esclarecidas, conscientes, diante da incapacidade organizativa das massas populares, inconscientes. Considerando os ensinamentos de Lukács, talvez devêssemos abandonar a perspectiva da organização à priori e conceber que as instâncias de decisão coletiva devessem nascer do interior das formas espontâneas de luta, de maneira que sua reprodução ampliada torne sem sentido os questionamentos sobre a representatividade das supostas vanguardas esclarecidas.

Pensando assim, a construção orgânica das instâncias de decisão coletiva, muito mais que uma versão melhorada da hierarquia das organizações do capital, deveria se constituir como sua negação definitiva. Nasceria das contestações de base territorial que, por isso mesmo, exigiria a formação de grupos populares localizados. Porém, com a difusão de manifestações semelhantes em outras localidades, o processo de fortalecimento das lutas cuidaria de aglutinar esses grupos locais por meio da formação de lideranças orgânicas, identificadas socialmente nas mesmas causas.

Talvez, assim, seria possível reverter a tendência de se consolidar como natural, como tem sido a ordem dos dogmas, a imposição da autoridade dos corpos dirigentes, criando novas oportunidades de serem reconstruídas as condições para que as críticas sejam ouvidas e incorporadas ao processo decisão coletiva, tendo em conta a soberania popular.

Nota final

Sugiro a leitura de “Que fazer?” e o “Relatório sobre o Congresso de Unidade do POSDR: Uma Carta aos Trabalhadores de São Petersburgo”, ambos escritos por Lênin.

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