Olhar Crítico - Comunica Digital

Um olhar sobre economia, educação, filosofia e política.

ISSN 1808-785X

Efeitos do discurso da liberdade

Helder Gomes

Helder Gomes, doutor em Política Social e mestre em Economia (UFES).

Qual liberdade?
Liberdade de expressão supremacista?
Liberdade para as práticas racistas?
Liberdade para o estupro de mulheres e crianças?
Liberdade para a homofobia?
Liberdade para a matança de adversários políticos?
Liberdade para o genocídio nas favelas?
Liberdade para o tráfico empresarial de drogas, armas e pessoas?
Liberdade para a corrupção miliciana?
Liberdade para a sonegação de impostos?
Liberdade para a violência no trânsito?
Liberdade para a destruição da natureza, em busca de lucro fácil?
Liberdade para se manterem impunes?

Recentemente, tivemos a oportunidade de ouvir relatos de vários coletivos populares da cidade de Vitória-ES. Em especial, aqueles que procuram organizar movimentos de autoproteção nas comunidades periféricas, ante a ausência programada dos poderes constituídos, num período de ameaças do surgimento de novas cepas da Pandemia Covid-19. A primeira sensação foi de desespero, de aparente impotência, ao perceber que a crise capitalista impõe perdas ainda mais intensas aos valores humanos, provocando toda sorte de violência e multiplicando o número de vítimas indefesas a cada dia. No entanto, na medida em que as falas se interagiam, foi possível perceber que, das forças vivas da resistência, surgem potências criativas de ação protetiva, solidária, comunitária.

Um consenso nos relatos se refere à constatação de que estamos vivendo a exasperação de um longo e contínuo processo de ampliação do desemprego, da fome, do desamparo e das diversas formas de violência. Mas, também, cresce entre a militância comunitária a percepção de que não basta a mobilização em torno de pautas formais de reivindicação, tradicionalmente direcionadas às autoridades de plantão.

O momento é outro. Cada vez mais se desfaz a ilusão, pelo menos entre aquela militância em particular, sobre buscar soluções apenas acionando algum/a agente de um suposto Estado provedor. Parece ficar evidente que a tendência tem sido o abandono das comunidades periféricas à própria sorte, na mesma medida em que tem ficado mais nítida a inversão das prioridades nos investimentos públicos: mais armamento e intensificação da violência policial nas comunidades; mais incentivo às parcerias público-privadas nas áreas de educação, cultura, habitação, saneamento ambiental, saúde e proteção social; menos participação popular e controle social sobre as decisões de políticas de desenvolvimento local.

Ficou nítido, também, que essa militância olha cada vez mais criticamente a realidade imediata e seus vínculos estruturais com uma forma de sociabilidade em crise. Isso tem sido possível, porque são militantes que se forjaram nas periferias, mas, que se moveram em busca de formação complementar aos saberes acumulados tanto na lida cotidiana, quanto no respeito às suas ancestralidades.

O acúmulo de conhecimentos dota essa militância de um senso crítico particular, que é perceber ideologias cativantes, escondidas no esteio da proposta de Estado mínimo. Com isso, tem sido possível se proteger das armadilhas cultivadas por trás do slogan “desenvolvimento como liberdade”, segundo o qual, desde que sejam garantidas as liberdades individuais, cada pessoa acaba, naturalmente, encontrando soluções para seus próprios problemas, sem necessidade de intervenção do poder público.

Por isso, talvez estejamos diante de um daqueles momentos da história humana, em que os movimentos que pressionam pela desumanização, em alto grau de radicalização, acabam fornecendo a matéria social para a mudança radical, em busca de outras formas de sociabilidade. Oxalá isso seja verdade!

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